Não se podia esperar que, estando Otto Lara Resende em Paris, em 1989, se transportasse para a Belo Horizonte de meio século antes e escrevesse, com detalhes, sobre seu primeiro emprego no serviço público.
O relato é prato cheio para um possível biógrafo do jornalista e escritor mineiro que, entre 7 e 21 de janeiro de 1989, preencheu dois cadernos com as experiências, externas ou internas, vividas na capital francesa. Minucioso como já se viu por aqui, anota na caderneta de seu arquivo registrada sob o no 029912 que embarcou no Galeão no dia 6, acompanhado de suas duas Helenas: a mulher, Helena Lara Resende, e a filha, chamada de Heleninha, além de Janet, cunhada de Fernando Sabino, e Bruna Nogueira, mulher de Armando Nogueira.
O ano mal começara e os viajantes encontraram Paris já explodindo em comemorações pelo bicentenário da Revolução Francesa. No charmoso Hotel de L’Abbaye, 10, rue Cassette, em Saint Germain des Près, onde se hospedou com a mulher, Otto lia os jornais e observava: “A R. F. pode de fato ser banalizada diante da avalanche de publicações, de obsessão do assunto, que já está na mídia”. Daria tudo para ver Jessye Norman cantando La Marseillaise no histórico 14 de julho daquele ano, mas, na data, já estaria no Brasil. O jeito foi se conformar de não assistir à interpretação da soprano estado-unidense vestida de vermelho, azul e branco, entoando o glorioso hino da França no dia da festa nacional.
Veterano na capital francesa, Otto tinha redobrado prazer em passear na cidade com a filha, levá-la à Brasserie Lipp, que adorava, a museus e praças. Nascida em 1968, quando os pais já eram quarentões, Heleninha era “todo um capítulo. Sozinha, toda uma razão de existir” – disse o pai em entrevista a Paulo Mendes Campos, publicada na Manchete de 26 de abril de 1975. Vê-la descer correndo escadaria abaixo na estação do metrô de Saint-Sulpice, fazia-lhe exclamar: “Ser pai é sofrer (ou padecer) na terra mesmo, até em Paris”.
Um dos objetivos da viagem era deixar Heleninha na cidade, onde ela ficaria três meses, estudando francês na Alliance Française. Aos 20 anos, ensaiava independência: ia morar fora do Brasil e dividir um apartamento com Maria Clara Ramos, a Nina, ex-colega no Colégio Souza Leão, que já morava em Paris e trabalhava num restaurante italiano. No futuro Nina se tornaria nutricionista e chef de cuisine, e Heleninha faria carreira no jornalismo.
“A ideia que faço de mim? Um sujeito delicado e violento. Delicado pra fora, violento pra dentro. Um poço de contradições. Um falante que ama o silêncio”, declarou Otto na mesma entrevista a Paulo Mendes Campos. Não era diferente quando viajava. Em meio aos passeios, encontrava tempo para o seu caderninho e ali registrava tudo o que acontecia durante o dia. E a noite também, como na que teve um pesadelo, acordou aflito, tomou um “Valium-me-Deus”, escreve ele, riu e voltou a dormir. Anotava desde fatos os mais comezinhos a reflexões graves. “Como não sentir pena/piedade dos homens, de todo destino humano? A misericórdia (divina, inclusive) é uma imposição lógica”, escreveu depois de assistir à peça de Bernanos Quant au Diable, n’en Parlons pas.
Perguntado a respeito de seu projeto de vida desde a juventude, respondera, ainda na entrevista à Manchete: “Sei lá. Escrever. Ser escritor”. Nos cadernos, no entanto, dedica-se ao exercício do registro como forma de perpetuar o momento ou de impedir que, um dia, a memória queira enganá-lo. Com frequência aproveita as páginas do caderno para anotar experiências do passado, da sua São João del-Rei de nascimento, ou evocar mortos queridos.
Quem conhece um pouco da trajetória de Otto Lara Resende sabe que ele exerceu muitas outras atividades, além de escrever para os principais jornais do país. Naquele janeiro parisiense, ele lembrou que fora nomeado para o serviço público havia exatos cinquenta anos. Conta que vinha andando na rua, em Belo Horizonte, a caminho de casa, para almoçar, quando foi parado pelo dr. Almir Ferreira de Sousa, que lhe perguntou o que ele ia fazer: “Vou almoçar", mas o doutor reformulou: “Não, da vida” e ele respondeu que ia fazer Direito. Estava com dezesseis anos de idade. “Então, volte depois do almoço e me procure aqui nesse prédio, primeiro andar à direita da escada”, ordenou o homem.
Naquele mesmo dia 9 de janeiro de 1939, Otto começou a trabalhar no Serviço do Imposto Territorial, da Secretaria de Finanças, o SIT, do qual o dr. Almir era diretor. “Devo-lhe o primeiro emprego sem o ônus de o ter pedido. E lhe devo uma certa simpatia – e até apego – que tive toda a vida pelo serviço público”, reconhece, anotando ainda que, antes, em 10 de dezembro de 1938 começara a trabalhar em O Diário, jornal de que o pai era diretor e Edgar da Matta Machado editor-chefe.
Depois de descrever o caráter do dr. Almir, “excelente figura humana”, e fiel espírito boêmio, Otto passa a discorrer sobre o destino dos nove filhos do ex-chefe. Notas longamente memorialísticas, que Pedro Nava certamente não desaprovaria.
Mas por que Otto Lara Resende, em Paris durante apenas duas semanas, dedicava-se a esse tipo de memórias? Que registrasse o modo como ingressou no serviço público é fácil entender: a data justificaria. Mas a descendência do dr. Almir? Mais parece uma vontade de, estando em outro continente, querer prender-se às suas referências mais caras. Ou, rendido aos encantos de Paris e da cultura francesa, reafirmar o amor às origens. Não é sem razão que lhe vem à memória a morte do pai, ocorrida no ano anterior. Descreve, então, desde o momento do diagnóstico até o desenlace. A perda de Hélio Pellegrino, também morto no ano anterior, ainda lhe doía muito; relembra episódios. E, em meio às saudades, no entanto, constatava: “Paris éclate de prosperidade”. Fazia brincadeiras, em francês, ao deparar com a Place Sainte-Oppotune: “Santa Oportuna? É só do que preciso: “Mon Dieu, je n’en ai besoin que de cette sainte!”. Oscilava de grave a divertido. Deixava a praça e andava pela av. Champs Elysées com mortos queridos: Santiago Dantas, Gilberto Amado, Alceu Amoroso Lima, que, recorda, dançava bem o tango. Em homenagem à nostalgia, toma duas taças de vinho.
No segundo caderno, registrado sob o número 029900, Otto conta o seu maravilhamento com uma exposição de Gauguin, que acabara de ver. É possível, pensa, que nunca mais tantas obras do artista, vindas de diferentes países, fossem novamente reunidas. E passa a fazer um perfil biográfico do pintor, pelo simples prazer de escrever sobre ele.
Estava completamente mergulhado na cultura francesa até encontrar o fotógrafo carioca Alécio de Andrade, garantia de um bom papo e evocações do Brasil. Morador do estúdio na rue de Rosiers, 19, Alécio era também excelente pianista e amante da música. Contou a Otto que havia um ano dera a Cartier-Bresson um disco de Ernesto Nazareth, mas, numa conversa, o pai do fotojornalismo deixou escapar que não gostava de música. Hélas!
“Juízo! Reze!”, dizia Otto a Heleninha, despedindo-se, de volta à rua Alexandre Ferreira, na Lagoa, onde moravam os Lara Resende.
Elvia Bezerra é pesquisadora de literatura brasileira e colaboradora no IMS.
Os mais de cem cadernos de escritores guardados no acervo de Literatura do Instituto Moreira Salles mostram o quanto esses itens, cada vez mais raros nos nossos dias, serviram no passado de laboratório de criação literária. Esta série em construção revela a singularidade desses documentos e a natureza de seus autores. Confira a coleção de posts elaborados a partir deste material cuidado e catalogado pelo IMS.