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Caixa de música

02 de janeiro de 2017

Se boas histórias costumam render boas imagens, belas imagens também podem inspirar, por si só, novas e distintas narrativas. A partir desta ideia o site do IMS criou a seção Primeira Vista, que leva  ao leitor textos inéditos escritos a partir de fotografias selecionadas no acervo do Instituto Moreira Salles, composto por quase dois milhões de imagens. A cada mês um escritor é convidado a criar um breve texto de ficção sobre uma foto, da qual não tem informação alguma, nem a identidade do fotógrafo ou a data e lugar em que foi feita. Cabe aos autores juntar, fragmentar e buscar elementos para a construção de uma história singular. O gaúcho Paulo Scott é o autor do primeiro texto, a prosa poética “Caixa de música”, inspirado em uma obra de Otto Stupakoff. A fotografia “Bailarina no Teatro Santana” integra a exposição Otto Stupakoff: beleza e inquietude, e foi feita no final dos anos 1950, durante o processo de demolição do prédio histórico situado na Rua 24 de maio, em São Paulo. Inaugurado em 1921, o imponente teatro foi fechado definitivamente em 1957, após muitos protestos da classe artística, para dar lugar a um prédio comercial. (Mànya Millen)

Bailarina no Teatro Santana, São Paulo, final dos anos 50. Foto de Otto Stupakoff / Acervo IMS

 

Primeiro a versão na qual tua pele reluzia assemelhada ao plástico das velas. E uma canção para ser a jaula que será aberta (é o que pretendo te contar; eu que já não consigo reconhecer a terra quando próxima aos ingredientes da terra estiver tua presença, a decomposição da tua arquitetura irrigada de vermelho que se protege buscando enraizar). Assim, e também quando do maço dos decalques outro decalque fosse retirado, descobri o deslocamento das chaves para desvelar a caixa. […] Caixa de eco. Eco maior que a canção. […] Somos a marreta que protagoniza a condução dos ganchos do realejo empurrando a surdez necessária para arrefecer o eco (desculpe demorar todo esse tempo para dizer que não serás a protagonista). Somos a formação que sem chegar à tua pele te recepciona dentro de um bosque lerdo, aceitando tua contraprestação como se fosse terra. Depois a versão na qual o teu vestido é a terra. […] Neste momento os que buscam jardim devem se retirar (tu fica). […] Daí medimos tua versão original e teu irrompimento sob a luz resplandecente do negativo (esse foi o truque para refazer o caminho da luz sem te virar do avesso). A ação da história já não precisa de rostos e muito menos de palco, mas dessa memória que ameaça mudar e não muda. A vida é ciclo, não é? Mas essa pergunta não veio da caixa e não veio da formação que a ocupa (teu discurso indireto). Ainda assim esse teu rosto em negativo: solene abajur desligando moldura que houver. Atemporal: máscara. Dentro da caixa a germinação; a caixa guarda o enfraquecimento do eco porque é germinação. Dentro da caixa o tempo espera a música. […] Bulbos, inverno adiante. Agora, entretanto, esta caixa, carne, primavera intrusa, coluna em ângulo reto te tomando para dançar. Porque és bulbo e fervura. E teu concreto inesperado: o mar da vida. […] A escuridão acena. Somos a escuridão, o tempo das outras sementes, o banho que escora a luz que te prensa, tampa que de outra tampa é retirada (este não é o ciclo que interessa; não te perde neste ciclo; dá o primeiro passo, nós seremos este teu primeiro passo). […] Somos o deslocamento da tua chegada e da tua presença, os que empilharam os tijolos, a chuva que pode cair, a terra, a formação. Dança a música, nós esperamos. Dança a música, dança. Detém a presente leitura, arrasta-a para este empacotamento (somos o narrador na segunda pessoa, a mão que prendeu e quebrou; agora tu recomeças). […] Gastamos a hora te revisitando, teu aviso em nós, mudando os músculos pelos quais tu respondes. Para que diminua a necessidade de medição e de eco, as chances de eleger um altar, uma vingança, para que a formação onde somos não ceda aos jardins, ao empacotamento dos jardins, para que permaneça caixa. Tua presença estraga a medição. […] Te acendemos. Acendemos tuas sobras, teu bulbo. […] Cede leveza. […] És trama. […] Música. Terra. Adentro, o centro que tua presença gera.

Paulo Scott é autor de cinco livros de poemas, como Mesmo sem dinheiro comprei um esqueite novo (2014), e cinco de prosa, como Ainda orangotangos (contos, 2003), Habitante irreal (romance, 2011) e O ano em que vivi de literatura (romance, 2015). Já recebeu diversos prêmios, dentre eles o Machado de Assis e o APCA. Nascido em Porto Alegre, mora atualmente em Garopaba (SC).