Feiras literárias são palco de muitos encontros, ninguém duvida disso. Propõem-se mesmo a estabelecer contato entre editoras e autores, a criar laços. Mas a Feira do Livro de Porto Alegre de 1976 foi além e promoveu um laço afetivo imprevisto: fez a aproximação especialíssima, que evoluiu para amizade, entre o poeta Mario Quintana e a futura atriz Bruna Lombardi.
Na ocasião, Bruna, que não passava dos 24 anos, lançava seu primeiro livro de versos, intitulado No ritmo dessa festa. Enquanto autografava, na fila que já ia longa viu o poeta gaúcho, que, aos 70 anos, de exemplar na mão, como todas as outras pessoas, aguardava a sua vez. Ainda sem bem acreditar, a autora não hesitou em correr até ele, tirá-lo da espera e dedicar-lhe o livro. A partir daí, nunca mais deixaram de se comunicar e de participar, ainda que a distância, da vida um do outro.
Morador de um apartamento no Hotel Majestic, na Travessa Araújo Ribeiro 187, Quintana esperava a amiga pelo menos uma vez por ano para um chá com biscoitos, passeio na praça e muita conversa. Antes dos encontros, trocavam cartas e, principalmente, bilhetes ou telegramas. É que Bruna confessava-se desorganizada, caótica até, e, além disso, tinha sempre a intenção de escrever longamente, mas acabava por se inibir diante da estatura do poeta, mesmo reconhecendo-o homem de genuína simplicidade. Conclusão: deixava cartas escritas até a metade, desistia de concluí-las e, quando a saudade apertava e vinha a urgência de se comunicar, ela lhe enviava um telegrama ou um bilhetinho – a carta ficava para depois, e poucas vezes as escreveria. Verdade que nem por isso deixava de mandar a Quintana “um baú de saudades” ou um bilhete amoroso como este: “Mario Querido, descobri como viver em volta do seu pescoço! Saudades e todo o meu amor. Mil beijos e mais um. Bruna. Cuide-se e não me esqueça”. Ele conservou a correspondência, hoje em seu arquivo, no IMS.
Um ano depois de se conhecerem, Bruna estrearia na telenovela Sem lenço sem documento, produzida pela TV Globo e exibida de setembro de 1977 a março de 1978. Naquele mês em que ela aparecia pela primeira vez na telinha, o jornalista e escritor Otto Lara Resende, que fazia o programa Jornal Painel na mesma emissora, convidou Quintana para ser entrevistado. Sabendo da amizade entre o gaúcho e a carioca, juntou-os em um almoço na própria TV Globo, onde Bruna encantava com sua beleza. Otto, sempre cuidadoso com seu arquivo particular, certamente revendo o papelório tempos depois, anotaria na cópia do telegrama a informação de que o poeta viera ao Rio para receber o prêmio Machado de Assis, quando, na verdade, isso só aconteceria em 1980, como se verá adiante.
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Em 1978 Bruna daria continuidade à carreira em viagem ao Xingu para gravar a novela Aritana, de Ivani Ribeiro. O poeta compartilhava da nova empreitada, como se deduz da carta que a atriz lhe escreveu:
Vou começar a gravar uma novela pra TV que afinal eu não posso viver sem um empreguinho, e essa semana vou ao Xingu. Acho até que foi por isso que aceitei a novela, só para ir ao Xingu, conhecer a vida dos índios, os poucos que ainda sobraram. Quando voltar te escrevo contando. Estou curiosa e assustada porque imagino o que vou ver e deve ser doloroso nunca poder fazer nada por ninguém.
Mal sabia ela o quanto a situação dos indígenas pioraria com o tempo, especialmente na virada da década de 2010 para a de 2020. E, claro, preparou-se para viajar ao Xingu. Contaria ela anos depois, em entrevista, que, ao ver o ator escolhido para fazer o papel do índio Aritana, personagem filho de um branco e uma índia, pensara: “Me dei bem”. Era Carlos Alberto Riccelli, que com ela formaria não só o par romântico da novela como também da vida: casaram-se dois anos depois numa união que já dura mais de quarenta anos. Nada disso, evidentemente, a impediu de continuar a amizade com o poeta gaúcho e de participar de suas vitórias, como naquele ano de 1980, em que ele ganhou o prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da obra, e publicou Esconderijos do tempo, um de seus livros mais prestigiados. É dessa coletânea o poema “Lili”, em que há uma mistura da personagem imaginária com a de Bruna, conforme se lê nos primeiros e nos últimos versos:
Teu riso de vidro
desce as escadas às cambalhotas
e nem se quebra,
Lili,
Meu fantasminha predileto!
[...]És a Bruna em pequenina
que eu desejaria acabar de criar.
Talvez sejas apenas a minha infância!
E que importa, enfim, se não existes...
Tu vives tanto, Lili! E obrigado, menina,
pelos nossos encontros, por esse carinho
de filha que não tive...
Em carta desse mesmo ano de 1980, e certamente comentando uma foto sua elogiada pelo amigo, Bruna escreve: “A foto da lilibruna, será que ela não é mais bonita na sua imaginação, você já a conhece tão bem, a tua cabeça é sempre mais rica do que a realidade, muito mais criativa”.
Mas o ano de 1980 também trouxe desventuras: Quintana foi obrigado a deixar o Hotel Majestic, onde morara por 12 anos, de 1968 a 1980. Por carta, Bruna desejava-lhe encontrar um outro lugar, que viria a ser o Porto Alegre Residence, sua moradia de “implacáveis solidões noturnas” até a morte. Essa vivência ficou registrada no tristíssimo “Este quarto”, que Fausto Cunha incluiu na seleção feita para a série Melhores poemas, de 1983, e cuja primeira estrofe é: “Este quarto de enfermo, tão deserto/ de tudo, pois nem livros eu já leio/ e a própria vida eu a deixei no meio/ como um romance que ficasse aberto”.
A maternidade para Bruna Lombardi não demorou para chegar mais que três anos depois do casamento. Em 1981, ela escrevia ao amigo: “Mário querido, escrevo cheia de emoção uma carta já tantas vezes adiada. Estou prestes a dar à luz e tenho pensado tanto em te escrever [...]”. Esperava o nascimento de Kim, seu único filho, hoje com 41 anos de idade.
O convite para trabalhar na série da TV Globo Grande sertão: veredas, de 1986, veio quando Kim estava com 5 anos. Foi possível, então, que Bruna aceitasse fazer o papel do jagunço Diadorim, da obra-prima de Guimarães Rosa. Quem lembra da descrição da personagem, feita pelo também jagunço e narrador Riobaldo, vê que a atriz convidada para interpretá-la era perfeita. Nas palavras de Riobaldo, ao contar sua história, descreve assim o amigo e amor: “E ele se chegou, eu do banco me levantei. Os olhos verdes, semelhantes grandes, o lembrável das compridas pestanas, a boca melhor bonita, o nariz fino, afiladinho”.
Quintana acompanhou a ansiedade de Bruna com o novo papel e se interessou pelo Diário do grande sertão, que ela escreveu durante as gravações. “Escrevi para não enlouquecer”, diria ela ao final do trabalho, lembrando da entrega com paixão e da experiência transformadora com a natureza durante as filmagens. O resultado da performance da atriz na série não deixou de impressionar o poeta: “Uma criatura tão feminina para fazer papel de homem é preciso ser uma verdadeira artista”, diria ele em entrevista a Angela Coporal.
Considera-se que verde e azul às vezes se misturam, ou um roça o outro – provam céu e mar. Se aceitarmos a ideia, pode ser de Bruna o olhar da “Canção de domingo”, em que o poeta escreve: “O céu estava na rua?/ A rua estava no céu?/ Mas o olhar mais azul/ Foi só ela quem me deu”.
Bruna Lombardi e Mario Quintana viveram o encantamento de uma amizade que durou até a morte dele, em 5 de maio de 1994, aos 88 anos de idade.
Elvia Bezerra é pesquisadora de literatura brasileira e colaboradora no IMS.