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“Eis o brasileiro!”

18 de agosto de 2017

Elogio é bom? Depende muito do humor e do tempo que cada um se dedica a pensar nisso. Nietzsche, por exemplo, abominava por princípio a prática da louvação a quem quer que seja: “No elogio há mais impertinência do que na censura” – foi o mínimo de desprezo à aprovação alheia que o pensador alemão deixou para a posteridade dos dicionários de citações. Não menos encucado, Freud tornou célebre a frase de almanaque “podemos nos defender de um ataque, mas somos indefesos a um elogio”. Na contramão da psicanálise e da filosofia, sem medo de ser feliz, Machado de Assis não tinha nada contra, muito pelo contrário, as manifestações de admiração: “Eu não sou homem que recuse elogios. Amo-os; eles fazem bem à alma e até ao corpo. As melhores digestões da minha vida são as dos jantares em que sou brindado.”

Tomando-se aqui o sentimento do célebre escritor brasileiro como o mais habitual entre os mortais diante de um elogio, um porre de felicidade é, sem exageros, a primeira impressão que se tem da festa que Nelson Rodrigues costumava fazer em suas crônicas ao embaixador e empresário Walther Moreira Salles, cujo acervo pessoal coordenado para o IMS pelo historiador Sérgio Góes começa a ser disponibilizado para o público. O jornalista não economizava loas:

“Durante anos, nos meus textos, tentei fazer de Walther Moreira Salles um mito. Só muito depois é que, pela intimidade que se criou entre nós, percebi que a pessoa era mais importante que o mito”, escreveu em maio de 1972 na coluna As confissões de Nelson Rodrigues, publicada em O Globo, a pretexto de um negócio que classificou em sua retórica inconfundível como “o extraordinário, o espantoso, o jamais concebido” antes em manchete de jornal: “Walther Moreira Salles comprou a parte de Rockefeller no maior banco de investimento do Brasil.”

No mesmo artigo sobre a façanha de um brasileiro “tratar Rockfeller de igual para igual”, o estilo hiperbólico do cronista passa da crítica ao elogio com a mesma criatividade delirante: “Certa vez escrevi que o nosso Walther, se o comparássemos aos milionários americanos, seria um tubarão de piscina, um tubarão de borracha, desses que as crianças cavalgam. Hoje já não há dúvida ou sofisma: Walther Moreira Salles é uma figura mundial.”

A admiração rasgada ao “último gentil-homem do Brasil” está documentada no acervo do IMS em 14 textos que ou levam a assinatura de Nelson Rodrigues ou reportam encontros do jornalista com o embaixador. Alguns dos acontecimentos que os aproximaram foram parar na coluna À sombra das chuteiras imortais, nas páginas de Esportes do jornal carioca. O futebol, em particular seu envolvimento com a campanha em prol da seleção brasileira a caminho do México no final dos anos 1960, promoveu “o nosso Walther” a “meu mais recente amigo de infância”:

“Há quatro ou cinco dias”, escreveu em coluna esportiva de setembro de 1969, “recebi um convite do casal Walther Moreira Salles. Ia ser reiniciada a campanha financeira Pó-Seleção Brasileira. E a mansão da Marquês de São Vicente abria suas portas (...) Walther Moreira Salles convocou os empresários. Transmitiu-lhes o seu entusiasmo. Essa mobilização significou tanto, tanto. (...) Hoje eu ousaria dizer que o ‘scratch’ está menos pobre.”

Encontro de Walther Moreira Salles e outras personalidades com Nelson Rodrigues na comemoração pelo lançamento de “A cabra vadia”, 20/04/1970

 

Definido em outras crônicas como “um certo tipo de milionário que é fundamental para o desenvolvimento de qualquer nação”, Moreira Salles impressionava Nelson Rodrigues com sua disposição para o trabalho – “Ele é um britador de asfalto” – e a virtude, que o jornalista destacava como rara naqueles tempos, de saber ouvir:

“Walther Moreira Salles é um maravilhoso ouvinte” numa época – já estávamos em 1970 – em que, “como se sabe, ninguém ouve ninguém”. Dá um exemplo: “Numa das minhas peças, conto uma audiência com certo Presidente da República. Um alto-funcionário é recebido pelo grande estadista. De repente, ele percebe que S. Exª não estava ouvindo absolutamente nada. Por via das dúvidas, resolveu testar o Presidente. Diz: ‘Sabe S. Exª que eu o acho uma besta quadrada; Um quadrúpede de 28 patas.’ Respondeu o supremo magistrado: ‘Vou provivenciar, vou providenciar’!”

O humor quase sempre dividia espaços e impunha limites ao elogio. Para destacar o “papel épico” assumido pelos empresários no desenvolvimento brasileiro, Nelson lembrava que, “outrora, o empresário ou era de teatro ou de boxe. (...) Mas o tempo passou. (...) No vocabulário dos nossos dias, empresário é uma palavra reabilitada.” – escreveu, mais uma vez a pretexto do apoio financeiro de homens de negócio à Seleção rumo ao tricampeonato mundial, quando o “scratch” ainda era conhecido como “o time do João” (Saldanda):

“O exemplo de Walther Moreira Salles define um novo Brasil. No passado, o homem rico não saberia dizer se a bola é redonda ou quadrada.” O Brasil, acreditava Nelson, começava a ver o empresariado com outros olhos muito por conta de iniciativas como a do “nosso Walther” de incentivo ao esporte mais popular do País. “Ponham-no a falar com um torcedor do Flamengo, um desses crioulões épicos, de ventas triunfais. E Walther Moreira Salles o tratará como se ele fosse um marquês, um xeque”, tamanha identificação do empresário com “as coisas brasileiras”.

A admiração era recíproca, embora o embaixador fosse naturalmente mais econômico que o amigo no uso delirante dos adjetivos em elogios mútuos feitos em público: “O Nelson consegue definir e penetrar profundamente na alma humana como nenhum outro escritor vivo da língua portuguesa. E tudo isso com uma, duas ou três frases, no máximo”, definiu Walther na “mais linda manhã do século”, título que Nelson deu ao evento matinal em que reuniu os principais personagens do livro A cabra vadia – figuras constantes em sua obra para televisão e jornal –, entre eles Roberto Campos, Gilberto Freyre, João Paulo dos Reis Veloso e, claro, “o nosso Walther”.

A hemeroteca com recortes do maior frasista brasileiro é um dos destaques do acervo pessoal de Walter Moreira Salles, que o IMS começa a tornar público.

Colunas de Nelson Rodrigues no Jornal O Globo

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