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SP no livro fotográfico: 1954-2017

06 de setembro de 2017

 

“São Paulo é feita de travessias bruscas”, escreve Roberto Pompeu de Toledo. Os livros de fotografia que tematizam a “capital da vertigem” do autor corroboram essa afirmação. A breve seleção da primeira mostra da Biblioteca de Fotografia do IMS Paulista revela como, ao longo de décadas de publicações, a cidade e a relação do habitante com ela se transformam rápida e constantemente. São Paulo evolui e retrocede; oprime e inspira; causa repulsa e desperta ternura.

Começamos em 1954, ano do quarto centenário de fundação da capital paulista. Após um rápido desenvolvimento urbano e econômico nas primeiras décadas do século XX, no início dos anos 1950 ela despontava também como metrópole cultural, e o quarto centenário enseja diversas publicações ilustradas comemorativas, patrocinadas pelo governo e pela iniciativa privada. Uma pergunta que parece mover todas elas é: como fazer propaganda de uma cidade sem grandes belezas naturais? Logo se acha a chave: São Paulo é um monumento feito pela hábil mão do homem; é “a cidade que mais cresce no mundo”, capital do progresso. São exemplares desse espírito o livro Eis São Paulo, narrativa quase cinematográfica na conjugação de fotos e textos, e o mais informativo, porém não menos ufanista, São Paulo: Fastest Growing City in the World, com fotos do alemão Peter Scheier.

A entrada da década de 1960 traz matizes mais sombrios, antes mesmo do começo da ditadura militar. São Paulo causa desconfiança e incômodo, e a poesia parece ser a saída. Surgem dois livros distantes do mote propagandístico anterior. Rua, do poeta Guilherme de Almeida, com fotos desoladas e ora borradas do fotoclubista Eduardo Ayrosa, exibe uma urbe pouco hospitaleira. Já em Paranoia, do então jovem poeta Roberto Piva, com fotos e projeto gráfico de Wesley Duke Lee, o escape poético é também alucinógeno – e sem volta. A cada dupla de páginas, a cidade emerge maldita e irredimível.

A veia autoral ganha força nas publicações dos anos 1970 e 1980. São fotógrafos-artistas que vivem na cidade e a releem de maneira mais pessoal e interpretativa, a exemplo dos livros de dois fotógrafos estrangeiros que adotaram o Brasil: Entre, da polonesa Stefania Bril, e São Paulo: anotações, do norte-americano George Love. Há em ambos maior liberdade e também um olhar mais esperançoso para a metrópole, como querendo vislumbrar tempos melhores adiante. A publicação de George Love vinha em dois volumes: um livro com uma seleção sua de imagens do acervo da Eletropaulo e outro com seu ensaio autoral. Esses dois vieses apontam para caminhos editoriais que surgiriam nos anos seguintes.

Primeiro, como observa o pesquisador Ricardo Mendes no artigo “São Paulo e suas imagens” (do qual esta seleção é grande devedora), a partir do fim dos anos 1970, e pelas duas décadas seguintes, há uma valorização da memória da cidade. Isso acontece tanto com o resgate de acervos históricos quanto com a promoção de uma nova documentação urbana. Nesse núcleo da saudade, destaca-se o livro-álbum Barra Funda: esquinas, fachadas e interiores, de Dulce Soares.

Segundo – e após um período nos anos 1980 e 1990 de renovado interesse pelo fotojornalismo, que fomentou a publicação de alguns livros pelas próprias empresas jornalísticas -, ocorre o boom de fotolivros autorais, já na virada do milênio. Novas editoras e programas de apoio à publicação aparecem; as vozes multiplicam-se e fragmentam-se.

Com a empreitada onírica de Noturnos: São Paulo, lançado em 2002, Cássio Vasconcellos constrói uma cidade surreal. Lucia Mindlin Loeb, em Entre duas esquinas da rua Celso Garcia, escava fisicamente o próprio livro nesse encontro viário – trazendo a questão dos livros de artista, de tiragem única ou reduzidíssima, que se apresentam como obras de arte. Os trabalhos de Mauro Restiffe (São Paulo, fora de alcance) e Felipe Russo (Centro), já na década seguinte, inserem-se numa tradição de documentação urbana, mas a subvertem e a ampliam ao assumir discursos próprios das práticas da fotografia contemporânea. O livro de Restiffe também traz à tona o caso de catálogos de exposição que têm ganhado mais autonomia em relação à mostra. Roose, de Marina Nacamuli, tipifica uma produção jovem cada vez maior de zines e fotolivros independentes, ao retratar os frequentadores noturnos da praça Roosevelt. São exemplos de releituras urbanas e de uma atenção voltada para o detalhe, para o vazio e para a diversidade da população. Temas que têm povoado as mentes dos artistas que vivem ou olham para São Paulo hoje.

 

Os livros da exposição

Eis São Paulo
Théo Gygas (org.), Georg Paulus Waschinski etal. (fotos). Monumento, 1954.
Realizada pela companhia de artes gráficas Ypiranga por ocasião do quarto centenário da capital, esta publicação é composta por fotos feitas pelos funcionários da empresa (sobretudo pelo chefe do departamento de fotografia) que, aliadas ao texto romanesco de Théo Gygas, criam uma narrativa grandiloquente para uma cidade que acompanha a “marcha do tempo”.

São Paulo: Fastest Growing City in the World
George Rado (org.), Peter Scheier (fotos). Kosmos, 1954.
Publicado também durante os festejos dos 400 anos, este livro é mais sóbrio, abrangente e detalhista, até por conta da clareza formal das fotos do alemão Peter Scheier, cujo acervo pertence ao Instituto Moreira Salles. Os locais, monumentos, museus etc. são nomeados, há números e estatísticas. Os textos, em inglês e francês, que tampouco se furtam ao tom propagandístico, apresentam a cidade à comunidade internacional.

Rua
Guilherme de Almeida (poemas), Eduardo Ayrosa (fotos). Martins, 1961.
Na década escura, mesmo o poeta Guilherme de Almeida, que escreveu o prefácio de Eis São Paulo e fez parte da comitiva do quarto centenário, exibe seu descontentamento com a cidade nestes “poemas-flashes”-, as calçadas são “serpentes que há nas ruas” e, se olharmos para cima, lá está o “topo agressivo dos prédios mais altos”. Há uma tensão que nas primeiras cenas matutinas de Eduardo Ayrosa é apenas sugestiva, mas vai aumentando a cada página, até chegar à alta madrugada.

Paranoia
Roberto Piva (poemas), Wesley Duke Lee (fotos). Massao Ohno, 1963 [ed. fac-similar: IMS, 2000].
A cidade está em convulsão. Piva e Duke Lee pintam um retrato que em muito remete à atmosfera beat dos Estados Unidos e à revolução sexual que despontava. No “poema antropófago sob narcótico”, a praça da República abriga “pombas crucificadas” e as fotos, como escreve o pesquisador espanhol Horacio Fernández em Fotolivros latino-americanos, constroem “uma biografia urbana tão perturbadora quanto o texto”.

Entre
Stefania Bril (fotos), Olney Krüse (poemas). Autopublicado, 1974.
Entre é uma sinfonia de ternura que a fotógrafa e crítica Stefania Bril oferece à dura metrópole. O historiador Boris Kossoy, no prefácio, contrapõe as imagens geralmente “perecíveis” de registro urbano à vivacidade das fotos de Bril, “de valor estético abundante e portador[as] de mensagens”. Há também um poema, mas neste caso os versos foram selecionados para acompanhar as fotografias, numa lógica curiosamente distinta daquela de Rua e de Paranoia.

São Paulo: anotações
São Paulo: registros 1899-1940
George Love (fotos e seleção), Benedito Lima de Toledo (textos). Eletropaulo, 1982.
A Eletropaulo, “retomando a tradição de promover uma documentação viva de São Paulo”, patrocina esta edição, entregando o trabalho a um verdadeiro artista. George Love organiza dois volumes. Anotações é seu “registro da cidade e diário pessoal”, que exibe as quatro facetas de seu trabalho: formal, jornalístico, introspectivo e casual. Registros 1899- -1940 é fruto de sua maneira criativa de editar as imagens do acervo histórico da instituição.

Barra Funda: esquinas, fachadas e interiores
Dulce Soares (fotos), Emanuel von Lauenstein Massarani (org.). Imprensa Oficial, 1982.
No âmbito da Comissão de Fotografia e Artes Aplicadas, da Secretaria de Cultura do Estado,
Dulce Soares realizou esta série, que hoje pertence ao acervo do IMS, sobre o bairro da Barra Funda.
A publicação cinco anos depois chama a atenção pelo grande formato com lâminas de imagens soltas, o que acrescenta um interessante gesto, talvez não intencional: o leitor pode fazer o que quiser com as imagens – espécie de apropriação da cidade através do livro.

Entre duas esquinas da rua Celso Garcia
Lucia Mindlin Loeb. Autopublicado, 2007. Acervo IMS.
Pesquisando novos suportes para a fotografia, Lucia Mindlin Loeb revisitou um levantamento fotográfico da avenida Celso Garcia que fizera para um projeto urbanístico. Compôs, então, este livro de artista, parte de uma trilogia, em que a foto de uma esquina da extensa via é repetida em todas as páginas e a seguir escavada. A imagem ganha volume e movimento na superfície do livro, como se o leitor pudesse entrar na rua, ou olhar para ela com uma lupa.

Noturnos: São Paulo
Cássio Vasconcellos. Bookmark, 2002.
Em uma ação “quixotesca” (como diz Nelson Brissac num dos textos desta publicação), que contrasta com o formato reduzido do livro, Cássio Vasconcellos sai às ruas à noite munido de um holofote para “pintar” os cantos escuros e cinzentos da cidade, fotografando-os a seguir. Noturnos opera entre o sonho e o pesadelo – mas esta é, ainda assim, uma noite colorida, habitável e contornável, diferente daquela sufocante de Paranoia.

São Paulo, fora de alcance
Mauro Restiffe (fotos), Thyago Nogueira (org.). Instituto Moreira Salles, 2014.
A cidade de Mauro Restiffe surge em imagens em preto e branco analógicas que, embora retratem por vezes terrenos baldios cavados nos vazios da metrópole e edifícios recém-construídos – o Templo de Salomão, a Arena Corinthians -, parecem suspensas num tempo estático, como dizendo que essa sempre foi São Paulo, que ela sempre esteve fora do nosso alcance.

Centro
Felipe Russo. Autopublicado, 2015.
As imagens deste fotolivro foram feitas ao amanhecer, quando o Centro ainda está vazio, na ressaca da madrugada. Os históricos postes de luz aparecem aqui quebrados, esburacados como o piso de pedra portuguesa, e até o skyline parece remendado. Trata-se de uma procura dos “rastros vazios”, como escreve Guilherme Wisnik no posfácio.

Roose
Marina Nacamuli. Autopublicado, 2017.
Os indivíduos retratados pela autora à noite na praça Roosevelt – local que tem sido palco tanto de protestos como de celebrações – neste livro-zine parecem vir diretamente da urbe de Cássio Vasconcellos, mas não há sonho ou pesadelo aqui: são pessoas reais habitando uma cidade real, e que procuram encontrar nela alguma conexão.

 

  • Miguel Del Castillo é o curador da Biblioteca de Fotografia do IMS Paulista.