Noventa anos depois de seu nascimento, em 14 de junho de 1928, Ernesto Che Guevara segue como um dos rostos mais conhecidos do planeta. O icônico retrato “Guerrilheiro heroico”, feito por Alberto Korda em março de 1960, no qual Che, de boina, mira o horizonte com olhar confiante e desafiador, ainda hoje corre o mundo em camisetas, pôsteres, grafites. Depois desta, provavelmente as imagens mais famosas do argentino pertencem a um único dia, 9 de outubro de 1967, quando o corpo sem vida de Che foi levado pelos militares bolivianos à pequena cidade de Vallegrande e apresentado a alguns poucos jornalistas que, um tanto pela sorte, outro tanto pelo faro, estavam no local. Entre eles o fotógrafo Antônio Benedito Moura (1936-2005), a serviço dos Diários Associados, grupo que publicava a revista O Cruzeiro, em que saiu a sequência de fotos do líder guerrilheiro executado acompanhado pelo depoimento minucioso da repórter Helle Alves. Desde 2016, as imagens históricas – uma série de 48 negativos em preto e branco – integram o acervo do Instituto Moreira Salles.
Moura e Helle Alves, além do cinegrafista Walter Gianello, da TV Tupi – que também pertencia ao grupo dos Diários Associados –, e do repórter José Stacchini, do Estado de S. Paulo, eram os únicos brasileiros ali, ao lado de uns poucos estrangeiros. No total, escreveu a repórter em seu contundente relato intitulado “Eu vi Guevara morto” na edição de 28 de outubro de 1967 da revista, não chegava a uma dúzia de jornalistas. Os brasileiros foram à Bolívia para acompanhar, na cidade de Camiri, o julgamento do filósofo francês Régis Debray, preso e processado por participar das guerrilhas bolivianas.
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Enquanto esperavam em Santa Cruz de la Sierra pelas credenciais, que nunca chegaram, perceberam uma movimentação atípica do Exército. Informação vai, informação vem, decidiram abrir mão de Debray e seguir o instinto, permanecendo na cola dos militares. O esforço foi recompensado. Entraram para a História no rol dos primeiros jornalistas a ver e documentar o corpo do homem que, depois de liderar a Revolução Cubana ao lado de Fidel Castro, quis estender a luta armada a outros países e terminou caçado e executado, aos 39 anos, nas matas bolivianas.
“As fotos são importantes pelos sinais que elas revelam, pela materialidade dos fatos”, avalia Sergio Burgi, coordenador de Fotografia do IMS. “Vemos ali as marcas no corpo, os tecidos que talvez tenham sido usados para amarrar os pés, a chegada do corpo numa maca presa aos esquis de pouso do helicóptero, exatamente como a Helle descreve. Há todo esse registro em imagens”.
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O trabalho mais marcante da trajetória de Moura, que nasceu em Bauru, trabalhou também na sucursal paulista do jornal O Globo e do Diário Popular, e recebeu diversos prêmios, teve ainda mais relevância na época por causa das dúvidas em torno da identidade de Che. Muitos boatos se espalharam e houve quem não acreditasse em sua morte. No texto publicado na Cruzeiro, Helle conta que Moura, comovido, reconheceu de imediato naquela figura muito magra, coberta de farrapos, com nove perfurações de bala, o mesmo homem que ele vira de perto em 1961, quando acompanhou a visita de Che Guevara, então ministro de Cuba, ao Brasil. Na ocasião ele foi condecorado com a Ordem do Cruzeiro do Sul por Jânio Quadros que, em 25 de agosto, apenas seis dias depois da cerimônia, renunciaria à Presidência da República.
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Além da chegada do helicóptero e do registro da multidão que tentava desesperadamente ver o guerrilheiro, as fotos de Moura mostram Che de vários ângulos, estendido na mesa de pedra da lavanderia do hospital para onde fora levado em Vallegrande. Nas imagens estão os médicos fazendo incisões no corpo. Os pés envoltos em farrapos usados como sapatos. Detalhes das mãos, que seriam decepadas adiante a pedido das autoridades militares, para confirmar a identidade. O rosto, as falhas inconfundíveis da barba, o semblante que parecia o de alguém adormecido e ainda revelava sua beleza e magnetismo. Helle descreve, no texto, como uma boliviana entra no local gritando, implorando, raivosa, para ver “o criminoso, o assassino”, e quase silencia diante do corpo: “Meu Deus, que homem bonito...Como estava fraco quando morreu...”
No lugar certo, na hora certa, Moura acabou fazendo História registrando as últimas imagens de um homem que fez a História.
- Mànya Millen é jornalista e integra a coordenadoria de internet do IMS.
(Com pesquisa de Andrea Wanderley)