“O escritor de verdade escreve naturalmente como quem mija”, disse Monteiro Lobato, certa vez, a Erico Verissimo. O gaúcho, porém, tinha suas desconfianças de que a escrita não era algo tão, digamos, fisiológico. Apesar da admiração que nutria pelo colega paulista, seu grande exemplo no início da carreira (“existem no mundo autores fecundantes – não necessariamente os maiores – que estimulam no escritor principiante a vontade de criar, reforçando-lhe a fé na arte da ficção”), ignorou os conselhos de não ir “atrás dessas novidades que andam por aí” e empreendeu uma investigação sobre a criação literária ao longo de seu livro de memórias Solo de clarineta. Ao final do primeiro volume (o segundo foi lançado postumamente), é possível imaginar sua resposta a Lobato: não, escrever não é só uma mijada.
O pensamento sobre o processo de criação literária faz parte da obra de muitos escritores, em livros que por sua vez costumam atrair muitos aspirantes a escritor. Não é o caso do livro de Verissimo, autor em geral ausente das listas daqueles que, supostamente, teriam revelado seus “segredos literários”, ao teorizar sobre a construção da escrita. Como fizeram com notoriedade Julio Cortázar e Edgar Allan Poe, por exemplo. Entretanto, Solo de clarineta bem poderia constar deste rol, por entremear de forma saborosa experiências de vida e reflexões sobre a escrita – como que nos lembrando de que é da aproximação com a vida que se trata a escrita.
O “fazer literário”, apesar da proliferação de oficinas de criação pelo país, permanece ainda hoje envolto em uma espécie de fetichismo. Ao ser inserida, meio que abruptamente, no circuito de eventos literários, quando ganhei o Prêmio SESC de Literatura na categoria contos, um ano atrás, constatei que nem os estreantes estão livres da tarefa de teorizar sobre a construção da própria escrita. Participando de festivais, feiras e cafés literários, percebi que é quase impossível ao escritor contemporâneo – pelo menos aquele reconhecido como tal (o fetichismo talvez impeça que todos que escrevem se apresentem como escritores) – fugir das perguntas sobre fontes de inspiração e rituais de escrita.
Pois bem, Verissimo não chega a se deter em bobagens místicas sobre o ato de escrever (bastante valorizadas pelas plateias), como o tipo de música ou bebida imprescindível para se dar o mistério da criação. Mas valoriza os aspectos psicológicos e especialmente o papel do inconsciente, que compara a um prodigioso computador capaz de guardar todo tipo de memórias ao longo da vida – um farto material para a ficção que virá. Esses aspectos são resgatados retroativamente quando ele especula sobre remotas influências que teriam sido responsáveis pelo jorro de palavras diante da maquina de escrever. Ou melhor, (evitando-se aqui a metáfora do jorro, mais apropriada a Lobato): ele conta em que circunstâncias, empolgado com um novo romance, começava “a arder numa espécie de febre”, que o tornava “alternadamente exaltado e deprimido”. Tal descrição do “transe literário” (que escritor nunca o viveu?) certamente faria sucesso diante da plateia de uma Bienal do Livro nos dias atuais.
Encontrar essas reflexões num livro de Verissimo que eu ignorava, antes de ter a oportunidade de lê-lo numa sessão do Clube de Leitura do IMS, foi uma surpresa para mim. Provavelmente porque cresci – e me iniciei na literatura brasileira – justamente em companhia das aventuras daqueles que considerava serem “apenas” os contadores de histórias de um Brasil que, à época, dizia-se ser importante conhecer desta forma. Além de Erico Verissimo, li praticamente tudo de Jorge Amado e Monteiro Lobato, por exemplo.
Leio agora numa entrevista que Verissimo orgulhava-se de ser um contador de histórias, algo não tão valorizado contemporaneamente. Mas nem por isso ele ignorava as debates acalorados sobre linguagem que aconteciam anos 1960, que menciona com alguma ironia em seu livro de memórias: “Nunca em nossos dias a linguagem e o estilo foram objeto de estudos tão minuciosos e transcendentes. Quando releio O grau zero da escrita, de Roland Barthes, com frequência me vem à mente um bilhete [de um contador de histórias da região que jamais se perdia em ‘pormenores inúteis’]. (…) É um modelo de neutralidade estilística e, digamos assim, de substantividade:
Maurícia:
Mando-te charque milho e ovos.
Manda-me meias camisas e ceroulas.
Aníbal”
Aníbal é um personagem real ou ficcional? Verissimo reflete também sobre o ato da escrita da memória, de certa forma assumindo que os fatos, ali, estão sim contaminados pelo artifício literário (a história do casal Aníbal e Maurícia continua em uma hilária e bem construída cena de suas bodas de ouro), e problematizando o gênero autobiográfico: “Então me pergunto se a memória não estará tentando enganar-me, bem como agora talvez eu esteja procurando ludibriar quem me lê”, assinala mais adiante, depois de relatar (ficcionalizar?) uma tocante lembrança de quando era bebê, acalentado pela mãe.
Os ensinamentos para escritores iniciantes, apesar de não tão evidentes quanto nos textos de Cortázar ou Poe, estão lá, em meio às histórias, como neste trecho sobre a questão da representação na literatura: “Acho o processo de copiar a vida barato e de certo modo indigno. Lembro-me sempre do conselho sobre a arte de representar que, num romance de Somerset Maugham, um homem do mundo dá a uma atriz: ‘Não seja natural: pareça’”. Ou ainda, sobre a construção do personagem mais famoso, Rodrigo Cambará: “… nem tudo que acontece na vida real torna-se necessariamente verossímil quando transposto para o plano da ficção”.
Assim como a literatura de Verissimo é falsamente simples, também os são alguns de seus conselhos sobre a arte ficcional. Em um momento em que ficção, memória e reflexão sobre a escrita se encontram, ele diz, de supetão, no meio de uma comovente história pessoal repleta de imagens poéticas: “(…) Se eu estivesse escrevendo ficção, jamais cometeria o erro técnico de contar que Wally morreu dois anos depois de nosso encontro, e eu li a notícia, ilustrada com o seu retrato – em Cruz Alta, já desligado do ginásio – no periódico do Cruzeiro do Sul, O Pindorama, de cuja redação eu fizera parte. Não contaria também que…”, e assim o mestre cria um efeito literário de tanto impacto quanto de difícil definição: trata-se de um efeito da escrita das memórias, da escrita da ficção ou da escrita da escrita?
Sob o impacto de conhecer o destino do menino Wally de forma vertiginosa, como vertiginosa é a morte afinal, o escritor que busca inspiração em outros escritores precisa parar sua leitura. Respirar. Não é hora apenas de se emocionar, como se fosse um adolescente em formação. É hora de aprender com aquele escrevia como que ardendo em febre, mas sabia que febre – ao contrário da micção – é um sintoma, e que sempre merece ser investigado.
* Marta Barcellos é escritora e jornalista. Mestre em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio, foi vencedora do Prêmio SESC de Literatura 2015, na categoria contos, com o livro Antes que seque (Record).
Ilustrações: Originais de Solo de clarineta I, de Erico Verissimo (1973). Acervo Erico Verissimo/IMS.
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