Como um garoto que tenta completar seu álbum de figurinhas em ano de Copa do Mundo, Cássio Loredano vibra a cada imagem rara que encontra nas mais de 10 mil fotografias da seção de esportes dos Diários Associados, recorte que o caricaturista e consultor do Instituto Moreira Salles vem esmiuçando para ajudar a reorganizar o acervo do grupo de Assis Chateaubriand, adquirido em 2016 pelo IMS, com um total de 1 milhão de imagens. “O trabalho que estou fazendo me leva para um tempo em que eu só pensava em futebol.”
Dia desses, Loredano vibrou como se tivesse feito um gol de título ao encontrar detalhe inusitado na formação clássica para fotógrafos do time Juvenil do Bangu, campeão carioca de 1959: agachado na linha de frente da equipe de Moça Bonita, lá estava ele, Ademir da Guia, antes de ser consagrado no mundo do futebol “maestro” da “Academia”, como o Palmeiras, time que o projetou, ficou conhecido nos idos de 1960.
A propósito desta descoberta, Loredano escreveu o texto abaixo, o primeiro de Fotografia falada, uma série de verbetes sobre a coleção de imagens reveladoras com que volta em meia ele se depara na investigação das mais de 800 pastas esportivas do acervo dos Diários Associados:
Ademir da Guia nos cueiros
“Que é que se dizia em São Paulo em 1961, quando o Palmeiras comprou do Bangu o passe de um menino chamado Ademir, filho de Domingos da Guia, o “divino mestre”? Filho de craque pode ser craque? Nunca. Pode até ser bom, mas vai estar sempre na sombra. O que ainda não se sabia ali – com a provável exceção de algum “olheiro” do Palmeiras – é que o jovem cobra de 18 anos e apenas um de profissionalismo já conduzira o pequeno Bangu ao vice-campeonato carioca e à conquista da primeira edição do torneio internacional de Nova Iorque em 1960. Competição da qual, aliás, foi eleito o melhor jogador.
E eis então, até 1977, a fulgurante carreira que ali começava: cinco vezes campeão paulista – e em pleno apogeu da era Pelé/Santos -, cinco vezes campeão brasileiro, campeão do Rio-São Paulo e do torneio do 4º centenário do Rio em 1965, três vezes ganhador do então prestigioso torneio espanhol Ramón de Carranza etc etc etc. A “Academia”, que era o time do Palmeiras sob sua batuta, trocou a camisa verde pela amarela da CBD para ser o Brasil (e vencer o Uruguai por 3 a 0) no jogo inaugural do Mineirão em 1965.
Na Seleção, em copas do mundo, a teimosia das comissões técnicas só lhe deu oportunidade em 1974, e assim mesmo no banco. Zagalo esperou o Brasil perder da Holanda na semifinal para fazer o que o clamor nacional pedia: escalá-lo contra a Polônia no jogo pelo 3º lugar. Ademir faltou fazer chover e foi então prudentemente substituído no segundo tempo para o Brasil poder perder, como perdeu. O turrão com certeza teria tido problemas para desembarcar no Galeão se, mantido o maestro em campo, o resultado tivesse sido outro...
E eis estas pérolas, fotos que vieram com o arquivo dos Diários Associados no Rio, incorporado ao acervo do IMS: o sararazinho carioca – depois verdadeiro ícone paulista, ídolo máximo da massa palmeirense, com busto de bronze no Parque Antártica e tudo – aos 17 anos na meia-esquerda do Bangu campeão carioca juvenil de 1959.” (Cássio Loredano)
Cássio Loredano, que recentemente assinou parcerias com Julia Kovensky e Paulo Roberto Pires na curadoria das exposições Millôr: obra gráfica e J. Carlos: originais (esta última ainda em cartaz no IMS Rio), teve pelo menos dois bons motivos para oferecer ajuda a Rodrigo Bozzetti, da Reserva Técnica Fotográfica, que desde fevereiro de 2017 coordena os trabalhos de ordenação e recuperação da informação na coleção dos Diários Associados. “Como caricaturista, passei boa parte da vida lendo fotos e fisionomias”, justifica. “Antes disso, para desespero de meu pai, eu só pensava em futebol, não à toa repeti de ano várias vezes na escola.”
Depois que sua primeira filha nasceu – Júlia hoje está com 23 anos e tem duas irmãs mais novas, Isabel e Alice –, a febre do futebol passou. Loredano, que já foi vascaíno doente, mal acompanha os altos e baixos – mais baixos do que altos – de seu time no Campeonato Brasileiro, mas é capaz de descrever em detalhes gols de Ademir Menezes, o Queixada, estrela maior de São Januário entre os anos 1949 e 1952. Hoje em dia, assiste futebol na TV muito raramente, “só para rir de tanta mediocridade”.
Não à toa, ao mergulhar no acervo dos Diários Associados – conglomerado de mídia que a partir dos anos 1920 publicava três jornais no Rio: O Jornal, Diário da Noite e Jornal do Commercio –, Loredano entrou numa espécie de túnel do tempo de suas memórias esportivas. “Descobri anteontem uma foto do Mengálvio ainda menino no Rio Grande do Sul, jogando pelo São Leopoldo, muito antes de formar com Dorval, Coutinho, Pelé e Pepe a famosa linha do Santos que fez história nos anos 1960.”
Dia desses, confirmou na legenda de uma foto que Garrincha, recém-chegado ao Botafogo, era mesmo conhecido como Gualicho – nome de um cavalo vencedor do GP Brasil –, informação que consta da biografia do craque, Estrela solitária, de Ruy Castro.
“O Cássio tem garimpado fotos de craques muito antes da consagração”, conta Rodrigo Bozzetti, da RTF. Passam por seus olhos de cartunistas – capazes de reconhecer um personagem pelo desenho da testa – uma seleção de meninos predestinados ao estrelato: Jairzinho ainda no tempo em que descia de casa na favela do Pasmado para treinar no Botafogo; o desconhecido Amarildo; Gerson recém-chegado de Niterói muito antes de virar “o canhotinha de ouro”. Só do Pelé são três caixas de fotos arquivadas.
Futebol à parte, as surpresas saltam das pastas reservadas a outros esportes. “Descobri dia desses uma foto da Barbara Heliodora, que todos conhecem como tradutora de Shakespeare e crítica teatral, ainda menina fazendo atletismo no Fluminense.” O pai dela, Marcos Carneiro de Mendonça, foi goleiro do clube e o primeiro na posição a atuar pela seleção brasileira.
Um detalhe triste chamou atenção de Loredano na imagem que reuniu atletas brasileiros junto ao avião que os levaria para a Olimpíada de Helsinque, em 1952: “Só tinha branco na foto e, no entanto, foram os negros Adhemar Ferreira da Silva (ouro no salto triplo) e José Telles (bronze no salto em altura) que trouxeram glórias no peito para o Brasil.”
Loredano está quase terminando a revisão que faz nas pastas de esportes dos Diários Associados, mas deve continuar trabalhando na organização do acervo. “Estamos ainda desbravando a ponta do iceberg”. A coleção completa tem 700 mil fotografias impressas e 300 mil negativos cobrindo um período que vai mais ou menos de 1915 a 2005. Nada é fácil. A começar pela autoria das fotos. “Só de 1974 para cá o nome do fotógrafo passou a ser associado às cópias em papel”, comenta Rodrigo Bozzetti. “Acho que créditos em fotojornalismo começam com Jean Manzon, e assim mesmo só identificavam profissionais de revistas como O Cruzeiro”, opina Loredano.
Outra complexidade da empreitada é a variedade de assuntos listados nos arquivos de origem. Tem, por exemplo, uma pasta “Marcianos” e outra com matérias sobre uma certa Associação das Debutantes Negras da Tijuca. A pesquisa de Bozzetti e Loredano começou em fevereiro de 2016, pouco depois que o acervo dos Diários chegou ao IMS Rio. Calcula-se que em abril de 2018 seja concluída uma listagem de assuntos e personalidades em planilhas Excel. Só então terá início a digitalização de imagens com dados agregados. É trabalho que não acaba mais!