Depois de descobrir e revelar o flagrante de Ademir da Guia campeão carioca atuando pelo time juvenil do Bangu em 1959, Cássio Loredano dedicou-se nos últimos meses a colecionar relíquias do mundo esportivo no acervo fotográfico dos Diários Associados recentemente adquirido pelo Instituto Moreira Salles. A pesquisa deu origem a Fotografia falada, uma série de 12 histórias escritas para este site pelo próprio caricaturista e consultor do IMS. A segunda delas – tão ou ainda mais surpreendente que o verbete de estreia sobre o início de carreira de Ademir da Guia – conta o desfecho no trajeto do presidente da Fifa, Jules Rimet, entre a tribuna de honra e o gramado do Maracanã, onde entregaria o troféu que levava seu nome ao campeão do mundo em 1950. Toda a estranheza daquele momento salta das expressões capturadas na fotografia dos Diários Associados. Cássio narra abaixo com estilo inconfundível dos amantes do futebol a dramaticidade do ápice daquela festa.
Jules Rimet e a entrega da taça
Cássio Loredano
Jules Rimet, presidente da FIFA, vai, pela segunda vez em vinte anos, entregar a copa do mundo a um uruguaio, Obdulio Varela, capitão da “celeste olímpica”. Eis a foto: nenhum dos dois parece ter realizado ainda completamente o que está se passando. Mas voltemos um pouco a fita. Domingo, 16 de julho de 1950. (Que data para nós. Nunca, nem antes nem depois, cada nacional se sentiu tão irmão do outro, tão irmanado, comungando tanto um com o outro. Nem no Paraguai, nem em 58, nem em 70; ali se solda mais efetivamente a nacionalidade. Não em vitória nenhuma, ali, naquele pesadelo. Não é o que já ensinava o historiador francês Ernest Renan (1823-1892) numa aula de 1882, O que é uma nação? “[...] o sofrimento em comum une mais que a alegria. Em termos de recordações nacionais, os lutos valem mais do que os triunfos.”
Faltam 10 para as 5 da tarde. Jules Rimet sobe ao gramado do Maracanã e não entende nada. Estava com 73 anos o idealizador e realizador do campeonato mundial de futebol. Descera lentamente da tribuna de honra, percorrera o subterrâneo do estádio e agora chegava à cancha. Mas quedê o corredor da guarda de elite que tinha que estar entre a boca do túnel e o círculo central, onde ele entregaria a copa que leva seu nome aos campeões? Aos brasileiros, está claro: entregaria a copa aos brasileiros. Nada. Havia era uma confusão incompreensível, o caos, corre-corre, empurra-empurra, e o velho francês ignorado e perdido ali no meio. Jornalistas, fotógrafos, correria e júbilo, mas dos de azul, dos de calções pretos! E como era possível ouvir tão claros os gritos daqueles poucos num lugar com 200 mil almas, no coração de um país com mais 50 milhões em volta? Onde já se vira um silêncio assim catatônico? E por quê? Então, pode ter visto aquele último brasileiro, o camisa 5, se encaminhar chorando para o túnel de que ele próprio acabara de emergir; o olhar estúpido, esgazeado, terá vagado em redor e achado ali em cima o placar manual com as tabuletas mal-acabadas dos algarismos 1 e 2 entre os nomes Brasil e Uruguai.
O Brasil fizera 1 a 0 no 1º minuto do 2º tempo com Friaça, nosso ponta-direita, quando só se precisava do empate. Empate que veio então por obra de Schiaffino, mas tudo bem, era impossível qualquer outro desfecho fora o título em meio àquele fervor, àquela energia geral avassaladora. Pois sim: Ghiggia tinha virado o jogo a 11 minutos do final, enquanto Rimet atravessava vacilante o Aqueronte que foi o porão do Maracanã aquela tarde.
(Boa parte de tudo isto está no excelente Anatomia de uma derrota, de Paulo Perdigão.)
Existe na internet um belo texto de Jorge Valdano publicado no El País de Madri no início da década de 1990, "La más grande derrota del mundo". Valdano é ainda muito melhor escrevendo do que era jogando bola, e isto porque foi campeão mundial com a Argentina em 1986...
Conta-nos ele como Obdulio Varela comprou numa banca na manhã daquele domingo vinte exemplares de um matutino que dava por favas contadas o Brasil como o campeão da tarde. Distribuiu-os pelo vestiário charrua e mijou em cima de um. “Esta partida se ganha com os ovos na biqueira das chuteiras”, teria urrado subindo o mesmo túnel de que, duas horas depois, sairia Jules Rimet para lhe passar às mãos a copa.
Eis a foto. Ainda por cima, tinha caído a noite. Se a boca-da-noite do domingo já é normalmente deprimente, se já normalmente essa é a hora oficial do desespero, avalie aquela cena e cenário asfixiantes que o clarão esquálido do flash do fotógrafo dos Diários Associados ilumina.