“Se você olhar fixo por mais de trinta segundos para o manequim, verá através: a transparência é sua principal dádiva aos homens”. Trinta segundos mais e talvez o leitor descubra o autor da frase: Ivan Lessa, que, representado por desenho inédito de Cássio Loredano, passa a integrar o Portal da Crônica Brasileira. Com base em material de seu arquivo, o também jornalista Sérgio Augusto, consultor do acervo de Lessa no Instituto Moreira Salles, preparou uma seleção de crônicas, redigiu um perfil biográfico, além de uma cronologia comentada e ilustrada.
Desse modo, Ivan Lessa acabou não escapando do Brasil, ou do Bananão, como preferia chamar seu país de origem. Nascido na cidade de São Paulo em 1935, cedo mudou-se para o Rio de Janeiro, onde fez parte da juventude bronzeada nas areias de Copacabana ao Leblon. A partir de 1978, seu destino foi Londres, onde morou até o dia da morte, em 8 de junho de 2012: “Ela combina mais com o meu crepúsculo” – justificava ele, que fixou residência, a mesma, em 12 Bolton Gardens, South Kensington. No endereço nobre, os moradores do prédio compartilhavam um belo jardim, espécie de praça privada com chave para cada inquilino. Retornou ao Brasil, não se sabe se desapontado ou não, por meio de seu acervo, que desde 2017 começou a chegar ao IMS.
O jornalista que começou a brilhar em O Pasquim em 1969, e ali permaneceria até 1980, era de tal modo impregnado de irreverência que a imprimiria até mesmo na trajetória da papelada que deixou na terra de Shakespeare, onde fez carreira na BBC de Londres. Pois foi num início de tarde de março de 2017 que a brasileira, naturalizada inglesa, Graça Fish, entrou no IMS Rio carregando uma grande mala com o primeiro dos três lotes de que se comporia o acervo de Ivan Lessa. A mala, cujo conteúdo foi enviado por Anna Elizabeth Ribeiro Fiuza, viúva do jornalista, vinha de Londres, onde ela mora até hoje, fez escala em Salvador, terra de Graça Fish, ali passou por tratamento arquivístico preliminar feito pela própria Graça com a pesquisadora Edinha Diniz, e desembarcou numa sala do IMS, sob o meu olhar perplexo: foi a primeira vez que, nesses dez anos como coordenadora de Literatura, recebi um arquivo nessas condições. E me sinto recompensada de ter vivido a experiência – devo dizer.
Se conto a invulgar história de chegada desse acervo é para reafirmar a minha crença de que informalidades audaciosas cabem perfeitamente dentro dos processos arquivísticos. Podem até mesmo superá-los. A rigor, aquisições de acervos não dispensam protocolo severo: avaliação do material, contagem de documentos, elaboração de contrato, contratação de transporte, com seguro do conjunto, declaração de recebimento, listagem de itens etc. É o que costumamos observar. Mas com Ivan Lessa não foi nada assim. A aquisição precedeu as formalidades legais, agora em dia, e, como já disse, partiu de uma mala escancarada, com conteúdo então desconhecido para nós, trazida por iniciativa da hoje aposentada project manager da Embaixada do Brasil em Londres, amiga de Ivan e Elizabeth, que decidiu salvar a memória do autor de Gip Gip Nheco Nheco, coletânea da coluna de mesmo nome publicada por Lessa em O Pasquim entre 1971 e 1981.
Não fossem arroubos dessa natureza e hoje não teríamos Manuel Bandeira no Arquivo-Museu de Literatura de Fundação (AMLB) da Casa de Rui Barbosa (FCRB). Sabem como foram preservados os papéis do Poeta de Pasárgada? Quando, logo depois de sua morte, o advogado e bibliófilo Plínio Doyle, em atitude da mais genuína intuição arquivística, foi ao apartamento de Lourdes Heitor de Sousa, mulher com quem Bandeira compartilhou os últimos anos de vida, e recolheu, em sacolas de papel dos supermercados Disco, todo o papelório do poeta. Doyle acondicionou o material na mala de seu carro e levou-o à Casa de Rui Barbosa. Nascia, desse modo, o Arquivo-Museu de Literatura da FCRB, hoje guardião de milhares de documentos pessoais de grandes nomes da literatura brasileira.
Sem a coragem gerada pelo desejo de preservação de memória, o material colecionado por Ivan Lessa poderia ser esquecido em seu apartamento londrino, e não causaria espanto se, no futuro, alguém, deparando com a montanha de papéis, e desconhecendo sua importância, confirmasse um dos seus mais populares aforismos: “No Brasil, a cada 15 anos todos esquecem o que aconteceu nos últimos 15 anos”.
Evidentemente, textos publicados em periódicos são sempre recuperáveis, sobretudo na era da digitalização. Mas sem a nota cuidadosa, ou mesmo aflita, que autores, alguns com mais frequência que outros, costumam fazer no recorte de jornal depois de ver o texto impresso. Tratando-se de Ivan Lessa, seriam irrecuperáveis, no entanto, as mais de quinhentas cartas, entre as quais as 218 que a mãe, a cronista Elsie Lessa, moradora do requintado Condomínio Casas do Gandarinha, em Cascais, enviou ao filho em Londres. Reservava os verões para usufruir do bem-estar português, junto à mãe, no apartamento de Cascais, no mesmo prédio cujo último andar, o oitavo, pertencia a ninguém menos que Grace Kelly. Há também no arquivo mais de cem cartas do pai, o escritor Orígenes Lessa, além de aproximadamente trezentas fotografias, nove cadernos de notas manuscritas e textos originais datiloscritos. Boa parte dos itens está catalogada e em breve estará disponível para consulta na base de dados de Literatura do IMS.
Cabe ao jornalista e escritor Sérgio Augusto, que foi editor de O Pasquim, com Ivan, entre 1972 e 1975, a análise do conjunto em que ressaltam, ainda, recortes de jornal dos verbetes humorísticos “ABC do sexo”, ilustrados por Jaguar e publicados no jornal Última Hora, assim como a produção para o Diário Carioca, material para, quem sabe, um livro. Ou mais de um. Uma estimativa indica que o arquivo Ivan Lessa consta de cerca de 2.500 itens, o que não é muito se comparado aos quase quinze mil de Otto Lara Resende ou aos 6.500 de Paulo Mendes Campos, para me referir a dois de seus pares no acervo do IMS. Os dados, no entanto, não diminuem a importância do arquivo do autor de Ivan vê o mundo, que guarda um momento da memória nacional em que o humor e a irreverência, mais que nunca, e tal como hoje, não podem faltar.
De início, no Portal da Crônica Brasileira, serão predominantemente textos da coluna Rosa dos Ventos, que ele assinou no Diário Carioca em dezembro de 1965. Seja com a ironia de “Manequim, osso e pele”, seja com as memórias de “Ao professor, com pêsames” ou com o surrealismo de “A casa”, aqui está um pouco de Ivan Lessa, cronista, para começar.
Elvia Bezerra é coordenadora de Literatura do Instituto Moreira Salles