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Gautherot encontra Guarany

08 de março de 2016

As esculturas do mestre Guarany e as fotos de Marcel Gautherot – atrações da exposição A viagem das carrancas (em cartaz até 20 de março no IMS-RJ) – inspiraram este ensaio de Samuel Titan Jr., publicado no catálogo da mostra e que é aqui postado a pretexto de reforçar o convite ao público para conferir de perto uma das coleções mais representativas da arte popular brasileira.

 

Quando foi parar em Bom Jesus da Lapa, às margens do rio São Francisco, Marcel Gautherot já levava quase sete anos entre nós. Chegara em 1939, movido pelo desejo de viajar e inspirado pela leitura de Bahia de tous les saints, tradução francesa do ro­mance Jubiabá, de Jorge Amado.1 Planejava subir o rio Amazonas, descer os Andes e tomar rumo leste para chegar ao Rio de Janeiro a tempo de ver o Carnaval, antes de voltar a Paris e ao trabalho no recém-fundado Musée de l’Homme. Quis o destino que não fosse assim: com o estalar da guerra, em setembro de 1939, e a queda da França, em junho de 1940, Gautherot viu-se forçado a uma temporada mais longa que a prevista.

Mas o mesmo destino quis que essa permanência, ditada pela hora mais negra do século XX, representasse também o início de uma formidável “aventura da sen­sibilidade”2. Viajando incessantemente por um país vasto e complexo, em que se cruzavam tempos históricos distintos, o jovem Gautherot foi aos poucos forjando um olhar voltado para a captação de suas novas experiências brasileiras. As fotogra­fias das carrancas do São Francisco constituem um dos passos desse processo. Exa­minando as imagens aqui presentes, o leitor poderá surpreender Gautherot nesse esforço de sintetizar numa fórmula pessoal e inconfundível os diversos elementos de sua formação francesa.

 

 

O primeiro desses elementos é, sem dúvida, a disciplina museológica, aprendida no Musée de l’Homme, onde começara a trabalhar em 1936, primeiro como arquiteto e, pouco depois, como fotógrafo de coleções.3 Diante das carrancas, Gautherot varia as perspectivas e os enquadramentos, não apenas em busca do “melhor ângulo”, mas igualmente para constituir uma documentação que dê conta de “peças” tridimen­sionais tão complexas. Esse procedimento é bem visível nas pranchas de contatos compiladas pelo fotógrafo anos mais tarde – uma das quais é reproduzida aqui. Da mesma forma, o esforço de capturar as carrancas ao lado de figuras humanas e de marcos da paisagem serve, em primeira instância, a esse trabalho de documen­tação – pois umas e outros servem para indicar as dimensões aproximadas do objeto.

 

 

O segundo elemento é de inspiração etnográfica: homens, mulheres e crian­ças não figuram nas fotografias apenas para fazer as vezes de réguas humanas. Gautherot não os captura preferencialmente em pose estática nem os força a tan­to, antes cuidando de surpreendê-los em meio à lida na beira-rio – lavando roupa, carregando fardos, descansando ou conversando. Assim, na contramão do exotis­mo, que as converteria em bizarria aborígine, Gautherot não extrai as carrancas do contexto social em que existem. Em suas fotografias, o universo simbólico e o mundo da razão prática convivem ombro a ombro4, o que denota, se não uma doutrina, certamente uma sensibilidade antro­pológica e humanista.

 

 

 

 

O terceiro fator em jogo é de ordem biográfica e, em certo sentido, política, na medida em que essas filiações humanistas de Gautherot são discretas, mas marcadamente plebeias. Longe de toda fotografia de propaganda, uma parte importante da obra de Gautherot pode ser lida como uma longa e vasta re­portagem sobre os modos de vida do povo brasileiro – à exclusão quase completa das elites e das classes médias urbanas. Várias fotografias produzidas em Bom Jesus da Lapa inserem-se nesse filão, cujas raízes biográficas remontam tanto às origens de Gautherot numa família da classe trabalhadora parisiense como à experiência marcante do Front Populaire, na França da década de 1930. Admirador de fotógra­fos como Henri Cartier-Bresson, Manuel Álvarez Bravo e Pierre Verger, o jovem Gautherot põe-se à espera do momento em que poderá capturar instantâneos da vida popular não sob o signo da pobreza ou da carência, mas sim em sua ordem e coreografia próprias – como é o caso do homem que descansa deitado sobre o dorso de uma carranca ou daquele outro que encara o fotógrafo do alto do Minas Gerais.

 

 

 

Por fim, um último elemento ou, antes, um último aguilhão, que se faz notar nas fotos, encarnado no vapor da Navegação Mineira do São Francisco: quando chega a Bom Jesus, Gautherot bem sabe que as barcaças, as carrancas e a arte do mestre Guarany têm seus dias contados. Essa consciência aguda alimentará, ao longo das décadas seguintes, seu afã de registrar um universo em vias de transformação profunda. Filho de uma geração marcada pelas vanguardas e pelas simpatias políticas à esquerda, Gautherot tentará sugerir uma síntese possível entre o passado e o futuro, o popular e o moderno5 – ao mesmo tempo que um veio secreto e dissonante de nostalgia antecipada irriga muitas das melhores imagens que fixou.

 

 

 

Notas

1 A tradução francesa de Michel Berveiller e Pierre Hourcade saíra um ano antes, pela editora Gallimard.

2 Ver HATOUM, Milton e TITAN JR., Samuel. “A paciência do olhar”. In: GAUTHEROT, Marcel. Norte. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2009, p. 10.

3 O Musée du Quai Branly, em Paris, conserva algumas dessas fotografias de peças de coleção – agradeço a Christine Barthe pela informação.

4 Assim, no livro fotográfico Brésil (Paris: Paul Hartmann, 1950), três imagens de carrancas (números 77, 78, 79) são suce­didas por uma visão geral do ancoradouro das barcaças (número 80).

5 Estendi-me sobre a “síntese moderna” de Gautherot em “Quatro fotógrafos da vida moderna”, p. 13, e “Gautherot”, p. 25, ambos textos in DERENTHAL Ludger e TITAN JR., Samuel. Modernidades fotográficas, 1940-1964. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2013.

 

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