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História de um soneto de Vinicius

26 de agosto de 2022
Manuscrito inicial de Soneto a quatro mãos, de Vinicius de Moraes e Paulo Mendes Campos. Guardado por Paulo, ele preserva as várias alterações feitas antes da versão final. Acervo Paulo Mendes Campos/ IMS

É relativamente comum o hábito de poetas incluírem data e local em seus poemas. Não que isso os explique, naturalmente, mas, em alguns casos, a informação ajuda a entendê-los. É o que acontece, por exemplo, no “Poema do mais triste maio”, de Manuel Bandeira, cuja primeira estrofe é:

Meus amigos, meus inimigos,
Saibam todos que o velho bardo
Está agora, entre mil perigos,
Comendo, em vez de rosas, cardo.

O poeta sentia os espinhos existentes na folha do cardo porque, em maio de 1964, Fréddy Blank, a mulher que ele amou a vida inteira, naquele momento sofrendo de demência, fora levada de volta à sua terra, a Holanda, para viver numa casa de repouso. “As saudades não me consolam/. Antes ferem-me como dardos”, segue ele com os versos, inconformado.

O popularíssimo “Soneto de fidelidade”, de Vinicius, por exemplo, exibe, ao final, a informação: Estoril, outubro de 1939. Aconteceu que, vencedor de uma bolsa de estudos, em agosto de 1938, o poeta viajara ao Reino Unido para estudar literatura inglesa no Magdalen College, na Universidade de Oxford, Inglaterra. Levou as saudades de Beatriz Azevedo e Mello, chamada de Tati, que conhecera nesse mesmo ano e com quem se casaria, por procuração, em 1939.

Não contava com a invasão da Polônia pela Alemanha, em 10 de setembro desse ano, fato que marcou o início da Segunda Guerra Mundial e obrigou os recém-casados a voltar para o Brasil. O trajeto de retorno foi por Portugal, onde, no Estoril, Vinicius escreveu o hoje famoso soneto, cujo terceto final, a respeito do amor, caiu na boca do povo: “Que não seja imortal, posto que é chama/Mas que seja infinito enquanto dure”, repetido com as deturpações comuns aos versos que se popularizam.

Mas há, na obra do poeta e diplomata, uma composição de origem curiosa, cuja história está narrada em crônica de Paulo Mendes Campos intitulada “Soneto a quatro mãos”. Nela, o autor conta que, “numa noite de descaramento etílico”, no apartamento de Fernando Sabino, propôs a Vinicius escreverem, naquele momento, um soneto juntos, com que o amigo concordou.

 

Versão final do soneto, publicada no Correio da Manhã em 10 de dezembro de 1946, e que permaneceria inédita em livro até 1991. Acervo Paulo Mendes Campos/ IMS

 

O manuscrito inicial (no alto desta página), guardado por Paulo Mendes Campos e hoje no acervo do escritor no Instituto Moreira Salles, preserva as várias alterações feitas antes da versão final, também preservada e publicada no Correio da Manhã de 10 de dezembro de 1946. A composição permaneceria inédita em livro até 1991, quando, na segunda edição do Livro de sonetos, cuja primeira edição é de 1967, a Companhia das Letras incluiu nove sonetos inéditos, entre os quais o “Soneto a quatro mãos”:

Tudo que existe em mim de amor foi dado.
Tudo que fala em mim de amor foi dito.
Do nada em mim o amor fez o infinito
Que por muito tornou-me escravizado.

Tão pródigo de amor fiquei coitado,
Tão fácil para amar fiquei proscrito.
Cada coisa que dei ergueu-se em grito
Contra o meu próprio dar demasiado.

Tendo dado de amor mais que coubesse
Nesse meu pobre coração humano
Desse eterno amor meu antes não desse.

Pois, se por tanto dar me fiz engano
Melhor fora que desse e recebesse
Para viver da vida o amor sem dano.

Não é preciso estudo de grafologia para identificar a diferença entre as letras: a de Paulo, que se conhece de outros documentos de seu arquivo, arredondada, e a de Vinicius, mais aguda. O uísque consumido pode ter tornado divertida a elaboração do soneto – imagina-se como –, mas certamente não mais fácil, mostram os rabiscos e os cortes. Vê-se, por exemplo, que a primeira estrofe do rascunho foi excluída por completo da versão final, datada de 12 de agosto de 1945 e guardada por Otto Lara Resende.

Fotocópia da versão final do soneto, datada de 12 de agosto de 1945 e guardada por Otto Lara Resende. Acervo Otto Lara Resende/ IMS

 

Estranhamente, ao ler o primeiro verso da versão definitiva, me veio de imediato à memória a abertura do poema “Confidência”, de Manuel Bandeira, em Carnaval: “Tudo o que existe em mim de grave e carinhoso/ Te digo aqui como se fosse ao teu ouvido...”. Mas deixemos o poeta de Pasárgada de lado, o assunto aqui é a noite de 12 de agosto, noite em que, reunidos no apartamento de Fernando Sabino, avenida N.S. de Copacabana 769/601, Vinicius e Paulo fizeram o soneto.

No sexto andar, protegidos do burburinho do bairro, podem ter brotado mais versos e, certamente, muitas histórias. Sabino dedicou a essa sua moradia a crônica “Edifício Elizabeth”, incluída em No fim dá certo. Rio de Janeiro: Record, 2020. Era à casa do amigo que acorria o resto do quarteto ao chegar ao Rio, em busca de aconchego mineiro, papo e uísque: primeiro Paulo Mendes Campos, depois Otto Lara Resende, e, por último, Hélio Pellegrino. Na crônica, Sabino, o primeiro a se mudar para a então capital federal, dá notícias de que, naquela época, Paulo morava no edifício Arali, no número 777 da mesma avenida: “inquilino de uma senhora que acabou se atirando pela janela (não sei se por causa dele)” – escreve.

Mas em pouco tempo o futuro autor de O amor acaba trocaria esse quarto por um outro “bastante bom e bastante mais caro”, informa ele em carta a Otto de 10 de dezembro de 1945. Corria o ano, ele já trabalhava nos principais jornais da cidade e pôde se mudar para um quarto melhor, que ficava no 10º andar do Ed. Miraí, em cujo segundo andar morava Carlos Lacerda, na avenida N. S. de Copacabana 787. Assim descreve o cronista a nova moradia: "[...] alto e espaçoso; cama também espaçosa; janelas pródigas com cortinas azuis; cobrindo o chão um vasto tapete que me faz sentir felino quando passeio para lá e para cá; numa das paredes, há um quadro horrível, uma cigana com um pandeiro e um céu atrás”.

Ali ele recebeu a visita de Drummond, o “magro poeta em pessoa”, que acabara de lançar A rosa do povo e, querendo ficar três meses sem escrever, emprestou-lhe a Remington portátil. Tornou mais suave ao amigo aquele fim de ano em que o calor já era “mais intenso que o afamado calor das amizades”, garantia o dono provisório da Remington em carta a Otto Lara Resende.

Quanto ao “Soneto a quatro mãos”, foi até mesmo musicado por Francis Hime e, graças à organização de Paulo Mendes Campos, pode ser visto aqui em suas diferentes versões. Não confundir com um outro “Soneto a quatro mãos”, parceria de Vinicius e Lêdo Ivo, que nada tem a ver com o anterior.

Elvia Bezerra é pesquisadora de literatura brasileira e colaboradora no IMS.