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J. Carlos ao alcance de todos

04 de outubro de 2021
 Detalhe de desenho de J. Carlos publicado na revista Para Todos em 8/1/1927. Coleção Eduardo Augusto de Brito e Cunha/ Acervo IMS

Seis anos depois de ser incorporado ao Instituto Moreira Salles, o acervo do caricaturista, chargista, ilustrador, publicitário, autor de teatro de revista e humorista José Carlos de Brito e Cunha (1884-1950), o J. Carlos, chega aonde todo acervo deveria almejar: aos olhos do público. A partir de hoje, pesquisadores, acadêmicos, historiadores e interessados em geral na obra do artista que já era multidisciplinar décadas antes de este termo se disseminar poderão ter acesso à sua produção e a itens do seu arquivo pessoal, disponíveis no site do instituto.

A digitalização e catalogação de todo o acervo marcam uma data importante, a da entrada da obra de J. Carlos em domínio público. A lei determina o domínio público a partir do primeiro dia do ano subsequente aos 70 anos da morte – completados em 2 de outubro de 2020.

É uma coleção abrangente, reunida por Eduardo Augusto de Brito e Cunha, terceiro dos quatro filhos de J. Carlos. Ele herdou uma imensa quantidade de itens do pai e ao longo da vida adicionou outros ao arquivo – como duas impressões de um disco de Zeca Pagodinho (Hoje é dia de festa, 1997), que usava na capa desenhos do artista, ou o catálogo da exposição retrospectiva realizada no Salão Assyrio do Teatro Municipal do Rio, em 1950, logo após sua morte.

O material disponível para consulta reúne cerca de 1.000 desenhos originais, 90 álbuns encadernados com coleções de revistas nas quais ele publicou, além de fotos, documentos variados e duas telas pintadas por ele.

Os desenhos são uma parte pequena do que restou de uma vasta produção – calcula-se que, em 40 anos de carreira, ele tenha feito mais de 50 mil. Só na Careta, onde atuou como desenhista exclusivo da revista ilustrada entre 1908 e 1921, apresentava, semanalmente, uma  charge na capa e outros seis desenhos nas páginas internas. Além disso, seu trabalho pôde ser visto pelos leitores de O Malho, Para Todos, A Cigarra, Vida Moderna, Revista Nacional, Ilustração Brasileira, Cinearte, Fon-Fon, A Avenida, a infantil O Tico-Tico, O Papagaio, O Cruzeiro, A Noite e Tagarela, revista onde publicou pela primeira vez, em 1902, aos 18 anos. A  maior parte dos desenhos se perdeu nas gráficas ou está espalhada pelos acervos de diferentes redações.

Para efeito de trabalho, o material foi dividido em três grupos. A primeira é a obra gráfica e os desenhos produzidos por ele. Um segundo grupo é o das revistas, reunidas em 90 álbuns. E o terceiro, um arquivo pessoal, formado por álbuns que contêm uma vasta documentação: notícias sobre a sua morte, recortes da imprensa, cartas trocadas com pessoas que queriam obras emprestadas, correspondência com uma escola que iria receber o nome de J. Carlos, fotos de exposições que exibiam suas obras.

Coordenadora de Iconografia do IMS, Julia Kovensky explica a escolha por não digitalizar todas as revistas: "As revistas estão inteiras na Hemeroteca da Biblioteca Nacional, não fazia sentido repetir. Mas indicamos todo o conteúdo dos álbuns. Como eram guardadas domesticamente, eles juntavam várias edições e encadernavam, Não são todas as revistas, mas temos um conjunto importante".

Ela acredita que o material terá grande procura. "J. Carlos é uma dessas figuras que são estudados na academia mas que transcendem muito. Ele é alvo de pesquisas acadêmicas, mas também é pop. tem uma imagem muito associada ao Rio de Janeiro. A Salinas (grife de moda praia) fez uma coleção inspirada no J. Carlos. Ele pode ser visto por vários ângulos."

Jovita Santos de Mendonça, integrante da equipe de Iconografia que trabalhou na pesquisa e revisão de todo o material, está fazendo seu mestrado sobre J. Carlos na Escola de Belas Artes. Ela explica o volume da empreitada pelo fato de terem partido de desenhos soltos, sobre os quais não havia nenhuma informação adicional. "A  gente estava num ponto cego, mas quando começamos a entender a evolução do desenho, do traço, torna mais fácil ir alinhando e ligando os pontos. Entre os originais, por exemplo, havia um folheto de propaganda da Nestlé, com 12 páginas, que ele ilustrou, era o início da entrada dos produtos industrializados nas cozinhas brasileiras. Provavelmente foi na época em que montou um estúdio publicitário, nos anos 1930."

Um acervo cumpre várias etapas até ser disponibilizado ao público da maneira mais completa possível. Com este não foi diferente. Ao chegar ao IMS, passou por um processo de inventário e em seguida de higienização. Paralelamente, a equipe chefiada por Julia começou a determinar um projeto de conservação, definindo que itens necessitavam de restauro e de que forma seriam guardados. E, ainda, a pensar aquilo que chamam o "arranjo" da coleção: o que havia ali e como se organizava, chegando aos três grupos descritos acima: originais, revistas e arquivo pessoal.

Com a conservação em curso, deram início à pesquisa e à catalogação, atribuindo informações a cada item. Por fim, a digitalização. No caso do arquivo pessoal, os álbuns estão catalogados, mas seu conteúdo, por enquanto, será disponibilizado a pesquisadores de modo presencial, quando esse acesso for possível.

Responsável pela catalogação, Gustavo Aquino dos Reis fez um trabalho exaustivo para incluir o máximo de dados e checar informações. Alguns desenhos tinham inscrições tanto de J. Carlos como das pessoas que os recebiam para fazer a publicação. Gustavo e a estagiária Beatriz Schreiner pesquisaram em que revista cada desenho foi publicado, e esta informação consta em campos específicos da catalogação, com número da publicação, data e, muitas vezes, seu contexto. "Fizemos um trabalho externo, consultamos a Hemeroteca da Biblioteca Nacional, o Arquivo Nacional, revistas como Careta, Para Todos, Fonfon, para localizar o maior número de dados possível", conta ele.

"Para além disso, tentamos ao máximo contextualizar as caricaturas. No período entre guerras, e durante a Segunda Guerra, ele retratou várias personalidades. Deixamos claro que personalidade estava sendo retratada. Se Hitler é uma figura fácil de ser reconhecida, outras, como Haile Selassie, imperador da Etiópia (de 1930 a 1974), poucos hoje conseguiriam identificar. E espero que, uma vez que todo o material agora está online, a própria comunidade nos ajudará a a encontrar informações."

Um acervo, como se vê, é um projeto em andamento. Deste, participam ainda Ellen Röpke Ferrando e Mayra Cortes (responsáveis pela conservação), o núcleo de digitalização do IMS e Cássio Loredano, autor de vários livros sobre J. Carlos e curador, com Julia Kovensky e Paulo Roberto Pires, editor da revista serrote, da exposição J. Carlos: originais, inaugurada em 2017 no IMS Rio.

 

Nani Rubin é jornalista e integra a Coordenadoria de Internet do IMS