Estima-se que tudo o que foi gravado de música popular brasileira em 78 rpm (rotações por minuto) gire em torno de 35 ou 36 mil discos. Guardião dos arquivos de colecionadores e pesquisadores importantes como José Ramos Tinhorão, Humberto Franceschi e Nirez, o Instituto Moreira Salles já contava com parte destes registros em seu acervo. Agora, com a recente chegada da coleção de Leon Barg, composta por 31 mil e 265 discos, o “álbum de figurinhas”, como brinca Beatriz Paes Leme, coordenadora de música do IMS, está muito mais próximo de ser completado. O pernambucano Barg, que dedicou sua vida à busca e preservação da música brasileira, morreu em 2009, aos 79 anos, deixando em Curitiba, onde se radicou na década de 50, a maior coleção de discos em 78 rotações do país.
O álbum musical só não se completa porque no acervo de Barg há gravações que coincidem com o material que já integra o acervo do IMS. “Achamos que deve faltar agora alguma coisa em torno de 4 mil registros”, comemora Beatriz. “O formato 78 rotações começa em 1901 e dura até o final dos anos 50. São quase 60 anos de música, e o Barg era um louco apaixonado, não sossegava enquanto não conseguisse a melhor cópia. Ele viajava o país inteiro, sempre de carro, porque não andava de avião, para pegar os discos”.
Beatriz conta que coleção comprada pelo IMS era o xodó de Barg, onde ele alocava os melhores exemplares que conseguia. “Às vezes um disco tinha um pequeno arranhão, mas o selo estava em perfeito estado, às vezes era o contrário. Então ele tinha duplicatas, triplicatas, quadruplicatas de um mesmo disco. E tudo está muito bem preservado, com uma qualidade incrível”, conta a coordenadora, lembrando a fragilidade da matéria-prima deste formato, a goma-laca, que pesava muito e se quebrava facilmente. Problema resolvido com a popularização dos LPs em 33 rpm, muitos mais leves e flexíveis, feitos de vinil.
As filhas de Barg, Lilian e Laís, que trabalhavam com ele, preservaram e levaram adiante a paixão do pai, cuja melhor tradução é a imagem da garagem da casa, transformada num organizadíssimo acervo. Nas estantes que tomam todas as paredes, os discos foram catalogados por Barg de acordo com as respectivas gravadoras e, dentro destas, estão separados por séries e selos em envelopes encomendados numa gráfica, que imprimiu os números um a um. Ele anotava meticulosamente em cadernos cada aquisição sua, e ia riscando os números em seu “álbum de figurinhas” particular.
Além da garagem, o resto da casa também é um atestado da devoção do pesquisador. Gramofones, fotos de cantores como Francisco Alves (o ídolo maior), prêmios e discos antigos decoram o espaço, exibindo o empenho de Barg para formar um acervo irretocável. A casa, como mostram as irmãs no vídeo abaixo, feito a partir de um longo depoimento registrado em janeiro de 2019, abriga ainda gravadores de rolos e modernos aparelhos de digitalização, que contam a história da Revivendo Músicas, criada em 1987 por Barg para recuperar fonogramas da MPB. Uma empresa familiar, cujo trabalho precioso resgatou aproximadamente 11 mil registros raros de grandes e pequenas gravadoras, de artistas famosos ou nem tanto, e de todas as regiões do Brasil, lembram as filhas – que continuam à frente do negócio, gerenciando um catálogo extenso de títulos nacionais e internacionais. Para Barg não bastava colecionar o disco físico, era necessário compartilhar de forma mais ampla sua paixão. “A música popular brasileira é nosso maior acervo cultural. A preservação disso era a glória da vida dele”, afirma Laís, acrescentando que gostaria de ver novas gerações ouvindo e estudando a coleção Barg.
Durante sua busca pela mais perfeita e completa coleção de MPB, Barg alimentou alguns desejos, como regravar tudo de Pixinguinha como arranjador e intérprete. O projeto não foi adiante, mas o pesquisador conseguiu todos os discos, agora um material fundamental para enriquecer o site Pixinguinha.com.br, criado em 2017 pelo IMS, que tem o arquivo pessoal do músico desde 2000. “Há coisas do Pixinguinha que sabemos que foram gravadas, e não temos, e há coisas que não sabemos se foram, e certamente estão no acervo Barg. Vamos completar a discografia do Pixinguinha, e isso já é uma maravilha”, comemora Beatriz.
A outra maravilha, adianta a coordenadora, é poder contar com a recém-chegada coleção no site Discografia Brasileira, que o IMS bota no ar nos próximos meses para disponibilizar todo o acervo musical da instituição. O ponto de partida são os 44 mil fonogramas do arquivo digital de Nirez, adquirido pelo IMS em 2015, juntamente com o banco de dados do pesquisador, celebrado pela organização (junto com Alcino Santos, Grácio Barbalho e Jairo Severiano) dos cinco volumes da Discografia Brasileira - 78 rpm: 1902-1964, publicado pela Funarte em 1982. A obra ainda é considerada a maior referência na área, uma bíblia dos colecionadores.
“Eu sempre falei que queria o álbum de figurinhas para ir completando, mas sabendo o que estamos procurando”, comenta Beatriz. “O arquivo do Nirez era uma coisa preciosa, e agora temos a coleção Leon Barg, que terá um espaço especial no site mais adiante. Aos poucos vamos inserindo tudo o que tivermos, substituindo gravações por outras melhores, como as que certamente encontraremos no arquivo do Barg. Esperamos que a iniciativa atraia outras instituições com acervos de 78 rotações, que queiram disponibilizar os discos para digitalizarmos”.
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