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Lygia, estranha e translúcida

19 de abril de 2021
Esboço para capa do livro Antes do baile verde. S.I, 1971. Acervo Lygia Fagundes Telles/IMS

 

É iconografia misteriosa o item acima, do acervo da escritora Lygia Fagundes Telles, que completa 98 anos em 19 de abril. Sob a guarda do Instituto Moreira Salles, o desenho, feito há meio século, não tem autoria conhecida. Da imagem, inferem-se duas informações: Lygia não trocaria seu “y” por “i”, logo não é a autora da ilustração. Comparando o item às edições de Antes do baile verde, sabemos que a imagem permaneceu no mundo das ideias: não passou de um esboço. Já o livro lançado em 1970 fez da autora uma referência na arte do conto. Para o escritor Caio Fernando Abreu, a obra mostrou que Lygia “é basicamente uma contadora de histórias, no melhor e mais vasto significado da expressão”.

A página inicial de “Os objetos”, primeiro dos dezoito contos do volume, já revela o estranhamento que perpassa a obra ao distanciar os elementos da trama de seus significados originais. O casal Miguel e Lorena conversa sobre a natureza dos objetos que decoram a casa onde moram. Miguel inquieta-se ao perceber a inutilidade de uma bola de vidro sem estar servindo como peso de papel. O personagem traça uma comparação entre a utilidade das coisas e a condição humana. “Os objetos só têm sentido quando têm sentido, fora disso... Eles precisam ser olhados, manuseados. Como nós. Se ninguém me ama, viro uma coisa ainda mais triste do que essas, porque ando, falo, indo e vindo como uma sombra, vazio, vazio”, diz ele.

Os objetos citados no conto denotam a preferência de Lygia por um campo semântico exíguo, mínimo, introspectivo. “Agulha”, “bola de vidro”, “fio de linha vermelha” são palavras e expressões do universo íntimo dos personagens. Não à toa, em Antes do baile verde boa parte dos enredos desvela-se em ambientes domésticos, o que provoca uma sensação de abafamento. Por reclamar sua existência, o ambiente não é apenas extensão da consciência do casal, pois os objetos incidem um espaço singular na trama, desenvolvida no motor da cadeia dialógica.

A percepção estende-se a “O moço do saxofone”. Lygia assume, com destreza, a voz masculina de um caminhoneiro que faz as refeições na pensão de uma ex-prostituta, local onde o pertencimento dos moradores nunca é absoluto. Frequentado por dezenas de anões, a casa tem aura fantástica. James, um engolidor de giletes, é o principal interlocutor do narrador-personagem. É ele quem nos revela a história do saxofonista. Todas as vezes que sua mulher se deita com outro homem, o músico desata a tocar uma melodia triste. E nada faz. “Chifre dói”, James vaticina.

Ainda que a influência exercida pelo realismo mágico seja reincidente, os contos de Antes do baile verde não devem ser dissociados do contexto de sua publicação. À época do lançamento, o país sofria a repressão da ditadura, de modo que alguns temas abordados por Lygia, como adultério e desigualdade social, não eram caros ao regime militar. Nada que tenha impedido a escritora de conquistar, com a obra, o Grande Prêmio Internacional Feminino para Contos Estrangeiros.

Para Lygia, política não era apenas tema ficcional. Em 1977, esteve em Brasília com a amiga Nélida Piñon para entregar o Manifesto dos Intelectuais que, com mais de mil signatários, pedia o fim da censura prévia. A foto abaixo mostra ainda o historiador Hélio Silva e o escritor Jeferson Ribeiro de Andrade. Doze anos depois, Nélida seria eleita a primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras, onde estreitou laços com a autora de As meninas (1973).

 

A partir da esquerda, Jefferson Ribeiro de Andrade, Hélio Silva, Nélida Piñon e Lygia Fagundes Telles em frente ao Ministério da Justiça, após entrega de manifesto contra censura. Brasília, 1977. (Foto: autor não identificado. Acervo Lygia Fagundes Telles/IMS)

 

Lygia integrou um grupo de escritoras responsável por inscrever a mulher na literatura brasileira. A mudança de paradigma refletiu-se na presença feminina dentro da Academia, sendo Rachel de Queiroz a pioneira. Lygia ingressou no Petit Trianon em 1985, pelas mãos da autora de O quinze (1930). A escritora pensava que não teria voto de nenhum acadêmico. “A Rachel disse: ‘deixe por minha conta’”, rememorou em entrevista à Folha de S.Paulo em 2003. Após o pleito, Rachel telefonaria à amiga para anunciar sua eleição para a ABL. Na mesma entrevista, Lygia declarou que teve Rachel “como uma madrinha”.

A introspecção cultivada na literatura não se refletiu diretamente na vida pessoal da autora de Ciranda de pedra (1954). Lygia teve muitas amigas. Fora do ambiente acadêmico, destaca-se a relação estreita com a escritora Hilda Hilst, figura recorrente no acervo fotográfico de Lygia no Instituto Moreira Salles. As autoras se conheceram ainda moças, em 1949, numa festa na Casa Mappin, então uma loja de luxo, pioneira do comércio varejista de grande escala no Brasil. Hilda deu um depoimento sobre a amizade das duas aos Cadernos de Literatura Brasileira n0 5:

"Todo mundo fez tudo pra criar uma animosidade entre nós. Os nossos universos são parecidos, mas se expressam de modos totalmente diferentes. Por exemplo, eu nunca entendi o que quer dizer o ponto-e-vírgula. Eu perguntava pra Lygia, ela me explicava. Eu dizia: 'Não entendo o ponto-e-vírgula'. Tanto é que nunca na minha vida eu escrevi com ponto-e-vírgula. Nunca entendi. Acho uma besteira. Pensei que não poderia escrever prosa porque não entendia o ponto-e-vírgula. Até que depois de 20 anos eu resolvi escrever. (...) Nós não falamos sobre literatura. É um assunto que nos irrita. Eu não falo porque gosto muito dela e tenho uma amizade profunda, afetiva mesmo, por ela. A gente não conversa sobre literatura. E somos muito tristes, o tempo todo. Telefono pra ela e digo assim: 'Você acha normal a mulher que pariu num avião e teve a criança sugada pela turbina? Quer dizer que eu posso levar uma criançada na cabeça!' Ela fala: 'Como sugou!? Hilda, as pessoas estão loucas!' (...) Ela sempre me disse que fica nua diante de mim. Eu também. Digo: 'Lygia, eu estou péssima. Estou doentíssima, acho que vou morrer, venha me ver, pelo amor de Deus!' Quero demais morrer segurando a mão da Lygia, porque sei que ela vai entender tudo na hora H. Ela vai dizer: 'Hilda, fica calma e tal que é assim mesmo'. A gente tem uma amizade, sei lá, pode ser até de outras vidas, embora sejamos muito diferentes."

Em vídeo publicado no canal do IMS no YouTube, Lygia declara que os “personagens gostam de viver como nós mesmos". Antes do baile verde traz o enfado mencionado por Hilda na dicção de personagens arquitetados em delicado fractal. Aplica-se ao livro a reflexão proposta pelo escritor francês André Gide no romance Os moedeiros falsos, de 1925: “La Fontaine havia desenhado o retrato do artista, daquele que consente em apreender apenas o exterior do mundo, apenas a superfície, só a flor. Depois, eu teria olhado ao retrato do sábio, do pesquisador, daquele que cava. Ao mesmo tempo que o sábio pesquisa, o artista acha” 1.

A combinação entre investigador e esteta é identificada no conto “A caçada”. Um homem interessa-se por uma velha tapeçaria exposta no interior de um antiquário, de tal forma que, imerso em náusea, já não distingue seu ser do objeto. Dessa forma, o ambiente do antiquário funde-se na imagem do tapete. “Seus dedos afundaram por entre galhos e resvalaram pelo tronco de uma árvore, não era uma coluna, era uma árvore!”, diz a narrativa.

Já no conto “Meia-noite em Xangai”, a náusea do sujeito transmuta-se em ressentimento. Lygia nos faz viajar até a turnê de uma soprano dramática pela China. A trama se passa quando já é alta a noite, após um concerto na cidade de Xangai. Enfatuada, a soprano sai do banho de sais para conversar com seu empresário, Stevenson. A cantora confessa: “Para ser sincera, não gostei muito da minha interpretação, a Du bist die Ruh podia ser melhor”. E acrescenta: “Lotte Lehmann me deixa longe”. A alemã Lehmann (1888-1976) foi uma das sopranos de repertório germânico mais talentosas durante a primeira metade do século XX. Suas interpretações dos Lieder de Strauss, Wagner e Schubert, como no exemplo citado, ainda são lembradas por melômanos ao redor do globo.

É possível que a prima donna destrate seu mordomo Wang por insegurança, pelo assombro causado por Lehmann. Inquietude estranha à mulher acostumada com muitos elogios. Dor de existir insuportável em uma ficção que se passa exclusivamente em um quarto de hotel. Talvez os personagens de Antes do baile verde sejam como nós, máquinas de desejo. Dor e gozo são apenas possibilidade e sugestão. Em espaços exíguos, Lygia cria vida na solidão de cômodos, onde cada ser cumprimenta a forma estranha – e translúcida – de sua existência.

 

1. Tradução do autor

  • Gustavo Zeitel é jornalista e estagiário na Coordenadoria de Literatura do IMS