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Mapa da dor

02 de março de 2017

A seção Primeira Vista publica todo mês textos de ficção inéditos, escritos a partir de fotografias selecionadas no acervo do Instituto Moreira Salles. O autor escreve sem ter informação nenhuma sobre a imagem, contando apenas com o estímulo visual. André de Leones foi convidado a escrever sobre uma foto de Vincenzo Pastore. O resultado é “Mapa da dor”.

Meninos engraxates jogando bola de gude. São Paulo, SP, circa 1910. Vincenzo Pastore / Acervo IMS

 

No dia em que levei meu pai para a frente do pelotão de fuzilamento, ele me disse que, entre os seus pertences, havia um livro surrado e, dentro dele, uma fotografia. “Seus pertences serão queimados junto com o seu corpo”, eu retruquei. “Eu sei”, ele disse, “mas, por favor, guarde a fotografia, fique com ela.” “Por quê?” “Você saberá quando vir.” Eu me afastei sem dizer mais nada. Estava tudo pronto. Ele gritou alguma coisa incompreensível, tudo o que ele disse a vida inteira me soava incompreensível, e foi com certo alívio que o observei ser vazado pelos tiros. Ordenei aos soldados que jogassem o corpo na carroça junto com os outros, todos seriam queimados logo mais, e que trouxessem o próximo e dessem prosseguimento aos fuzilamentos, sem descanso. “Quantos faltam?”, perguntei ao sargento. “Quarenta e oito, senhor.” “Tragam de cinco em cinco. Daqui a pouco escurece. Não podemos perder tempo.” Não era seguro fuzilar lá fora, no local onde os corpos seriam queimados, o que só nos dava mais trabalho. Saí do pátio pensando que, não fosse pelo cheiro, eu os queimaria ali dentro mesmo, uma pilha enorme ardendo noite adentro. Segui pelo corredor que levava às celas. Desde o dia em que meu pai fora preso e eu o visitara ali, não o vira mais. “Você vai morrer”, eu dissera na ocasião. “Eu sei.” “Claro que vão te interrogar antes.” “Eu sei.” “Sugiro que diga o que sabe.” “Vocês não vão arrancar nada de mim.” Mas, ao ser interrogado, entregou algumas posições e esconderijos depois que lhe arrancaram o polegar e o indicador da mão esquerda, os companheiros cercados e (os que sobreviveram) presos na noite seguinte. A porta da cela estava aberta e os pertences, jogados sobre a cama: uma Bíblia, um caderno repleto de anotações em uma língua que eu desconhecia, um toco de lápis e o tal livro, Titus Andronicus, que peguei e folheei ao acaso. Havia passagens sublinhadas. Mapa da dor, que fala por sinais, / Mesmo que o coração lhe bata louco / Não poderá dar golpes para acalmá-lo. A fotografia estava numa página em que ele circulara com força a seguinte frase: Rezem ao diabo; os deuses desistiram de nós. Joguei o livro no chão, com força, sentei-me na cama, respirei fundo e passei a observar a foto. Lá fora, no pátio, mais tiros, mais corpos. Por que meu pai queria que eu ficasse com aquilo? Não havia nada escrito no verso. Engraxates num cenário urbano e empoeirado que logo reconheci, ocupados com um jogo de bolinhas de gude. À direita, cortada ao meio por um poste, uma carroça com seu condutor em pé, ao que parecia fustigando o cavalo ou, olhando melhor, talvez não, talvez o homem olhasse para o grupo ali reunido, um braço erguido, como se acenasse ou chamasse alguém. Então me fixei na roda de jogadores e espectadores. As roupas sujas. Os chapéus, os bonés. Alguns descalços. Uns sujeitos observando bem de perto, lado a lado, um deles meio escondido pelo primeiro. Dois garotos agachados, envolvidos no jogo, e um terceiro como que prestes a se agachar, os olhos fixos no que acontecia. Outro, contudo, olhava não para o chão, mas adiante, como se prestasse atenção na conversa dos sujeitos, a caixa de engraxate presa às costas tapando o rosto de um menino negro, sentado logo atrás. Havia também um garoto à direita, ao lado dos sujeitos; a exemplo do outro, também não olhava para o chão, ignorando o jogo, mas parecia olhar além, o rosto virado para o lado contrário ao da lente, fitando a calçada pela qual, longe, uma mulher caminhava na direção deles. Foi quando me ocorreu. A mulher. Sim. Por mais distante e desfocada que estivesse. Era ela, só podia ser. Levantei-me no momento em que mais tiros se fizeram ouvir, as mãos trêmulas, e saí para o corredor. Um prisioneiro choramingava na cela vizinha. Outro parecia rezar mais ao fundo. O ar no corredor era pesado e úmido. Assim que voltei ao pátio, um sargento veio me dizer que a carroça estava lotada e a outra que mandara buscar ainda não tinha chegado. “Sigam com o trabalho mesmo assim”, eu disse. “Amontoem os corpos naquele canto, junto ao muro. Qualquer coisa, usamos a mesma carroça, descarregamos e carregamos de novo.” Ventava forte. Atravessei o pátio ainda olhando para a fotografia, distraído. Onde será que ele a encontrara? E como soubera? Eu a imaginei seguindo pela calçada e se aproximando do grupo de meninos, contornando para não atrapalhar o jogo, talvez sorrindo para um deles. Parei ao lado da carroça. Agora havia outros três ou quatro corpos atravessados sobre o meu pai, mas seu rosto e parte do tronco ainda eram visíveis. Um dos tiros lhe acertara o pescoço. Vi outros furos no peito. O braço esquerdo estava estendido, a mão mutilada pendendo para fora. Mapa da dor, que fala por sinais. Eu me debrucei e meti a fotografia sob a camisa empapada de sangue. “É sua.” Endireitei o corpo e olhei para trás no momento em que o sargento se aproximava. “A outra carroça quebrou a um quilômetro e meio daqui, senhor. Vieram correndo me contar.” Respirei fundo. “Sem problemas. Leve e queime esses aqui, depois volte para buscar mais.” Afastei-me enquanto ele chamava alguns soldados para ajudá-lo e gritava para que abrissem o portão. Alguns metros à frente, o pelotão apontou os fuzis para a leva seguinte de condenados. Por alguma razão, fechei os olhos antes que atirassem.

André de Leones nasceu em Goiânia, em 1980, e vive em São Paulo. É autor dos romances Abaixo do ParaísoTerra de casas vazias Dentes negros (todos lançados pela Rocco), entre outros.