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O abraço

06 de fevereiro de 2017

A série Primeira Vista traz textos de ficção inéditos, escritos a partir de fotografias selecionadas no acervo do Instituto Moreira Salles. O autor escreve sem ter informação nenhuma sobre a imagem, contando apenas com o estímulo visual. Inspirada por uma foto de Maureen Bisilliat, pertencente a uma série sobre travestis no carnaval do Rio de Janeiro (c.1980), Carola Saavedra escreveu “O abraço”.

Travestis no carnaval do Rio de Janeiro, c.1980. Foto de Maureen Bisilliat / Acervo IMS

Verso

Há um abraço, penso inicialmente. Mas logo surgem dúvidas, me detenho com mais calma diante da cena: um homem com a pele escura, mas não tão escura, ou não tão clara, coloca sua mão direita sobre as costas de uma mulher com vestido claro cintilante e muito decotado nas costas, ou seria um homem com vestido claro cintilante e muito decotado nas costas, ou seria um homem com vestido claro cintilante e muito decotado nas costas automaticamente uma mulher? Onde se iniciaria o mistério, a transformação com a pele não tão escura não tão clara. Mas seria mesmo um abraço? A mão desse homem de camisa jeans e uma águia nas costas, ou seria uma mulher de camisa jeans e uma águia nas costas? Ou seria um homem de camisa jeans e uma águia nas costas automaticamente um homem? Onde se iniciaria o mistério, a transformação com a pele não tão escura não tão clara. A mão que fecha o abraço não se espalma, não aperta, não se apossa, apenas o polegar estendido e os demais dedos que se curvam, um movimento que tanto pode ser o início quanto a interrupção de um desejo. Do outro lado, o antebraço esquerdo com a pele muito escura, ou ainda mais escura, se apoia no ombro direito da camisa jeans com uma águia nas costas. Não tão fluido que não pese sobre esse ombro, mas não tão intenso que tire do corpo seu equilíbrio de bailarina. Há certa distância nesse quase abraço, nesse quase toque, e ao mesmo tempo, uma abrupta proximidade, a construção de uma lente, essa instável moldura por onde se entrevê o mundo.

 

Frente (à guisa de p.s.)

O verso do abraço é um outro braço que se esgueira em direção à cena. Espectro não tão escuro não tão claro, um duplo impossível, o polegar estendido e os demais dedos em curva em direção às estrelas, movimento que tanto pode ser o início quanto a interrupção de um desejo.

Carola Saavedra é autora dos romances Toda terça (2007),  Flores azuis (2008, eleito melhor romance pela APCA), Paisagem com dromedário (2010, Prêmio Rachel de Queiroz na categoria jovem autor) e O inventário das coisas ausentes (2014). Seus livros foram traduzidos para o inglês, francês, espanhol e alemão. Está entre os 20 melhores jovens escritores brasileiros escolhidos pela revista Granta.