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O aniversário de Quarto de despejo

18 de agosto de 2020
Carolina Maria de Jesus em noite de autógrafos

 

Há 60 anos, no dia 19 de agosto de 1960, uma senhora negra catadora de papel tornou-se o centro das atenções na Livraria Francisco Alves, palco do lançamento de seu primeiro livro, Quarto de despejo, no qual contava o cotidiano da favela do Canindé, em São Paulo, onde vivia com a família. Tudo o que se passou naquele dia, Carolina Maria de Jesus relatou em texto manuscrito em seu diário e aqui reproduzido para marcar a efeméride.

“Assim que entrei na livraria fiquei emocionada com a afluência e já fui recebendo livros para autografar (...). Eu era o alvo dos olhares.” O momento ficou registrado na série Cadernos de Carolina de Jesus, hoje sob a guarda do Arquivo Público Municipal de Sacramento (MG), sua terra natal.

Carolina tem parte de seu acervo aos cuidados do Instituto Moreira Salles e será motivo de uma exposição que o IMS Paulista prepara para 2021, com curadoria de Raquel Barreto e de Hélio Menezes. Um Brasil para os brasileiros, nome escolhido para o evento, é também título de um caderno inédito sob a responsabilidade da área de Literatura do instituto, que selecionou um de seus textos – Não matarás – para se somar a este post-homenagem aos 60 anos de lançamento de Quarto de despejo.

O IMS tem ainda em preparação um site dedicado especificamente a Carolina Maria de Jesus, sob a edição de Fernanda Miranda.

19 de Agosto de 1960*

 

 

Era quatro horas eu já estava preparando o almoço e carregando água, porque eu preciso ir na livraria Francisco Alves para autografar o meu livro: Quarto de Despejo. Tomei banho, recomendei aos filhos que não brigassem, para ir cortar o cabelo e voltar para favela que eu ia voltar para levá-los na livraria Francisco Alves à tarde. Tomei café e sai, fui de ônibus. Na Rua Líbero Badaró comprei quibe para comer porque sustenta várias horas. Quando cheguei na livraria já estava aberta entrei, galguei as escadas e fui autografar. O senhor Nelson Assumpção tratou-me com gentileza, o telefone tocou. O empregado foi avisar-me que era para mim. Fui atender, era o Gil Passarelli, perguntou-me até que hora eu ia ficar na livraria.

- Até às 11.

Disseram-me que havia falado com a Vera e que os meus filhos estavam no barbeiro. Continuei autografando, quando os repórteres chegaram e entrevistaram-me. O repórter é descendente de japonês. Autografei um livro para o Doutor Adhemar de Barros e pedi ao Senhor Gil Passarelli para levá-lo. O Dr. Lélio chegou, o Gil disse-lhe que ia levar o livro para o Dr  Adhemar.

- Só com Audálio.

O repórter japonês pagou o livro. O Audálio chegou, conversou com o senhor Gil Passarelli, ele despediu-se, continuei autografando com o Audálio até as 12 horas. Chegou uma loira que queria falar com o escritor Paulo Dantas, que ela é escritora e mostrava os seus escritos e dizia que os seus manuscritos eram atraentes. O escritor Paulo ouvia com ódio interior, dava para perceber. Mas ele é escritor, tem que ser educado e tolerante. Ela aludia que o seu livro com uma capa sugestiva e boas publicidades poderia alcançar sucesso. Ela pediu-me um livro.

- Eu não posso dar livros porque o livro não é meu, eu recebo uma porcentagem dos livros.

O senhor Paulo Dantas deu-lhe um livro e nós saímos para almoçar. O Audálio disse-me para eu ir de carro, obedeci, tomei um carro e pedi ao motorista que avoasse. Fomos conversando. A conversa da atualidade. - Que os políticos infiltram-se na política, para melhorar a vida deles e deturpar a vida do povo. Que os preços vão galgando igual a águia no espaço. E os pobres é quem sofre. Percebo que o povo está revoltado. E assim, chegamos na favela. O motorista ficou horrorizado. Olhando a favela.

- O que é isso aqui, Dona Carolina?
- É o quarto de despejo de São Paulo.
- Credo! Ave-Maria! E como é que vocês vivem aqui?
- Nós, os favelados, somos os objetos fora do uso! Vivemos, com dificuldades. Para comer... temos que lutar, como se estivéssemos numa guerra!
- E vocês, aqui, sentem frio?
- Sentimos todas as agruras da vida.

Despedi do motorista e paguei- lhe 130 cruzeiros. Saí correndo, entrei no barraco, ouvi as vozes dos filhos.

- Olha a mamãe!

Encontrei água quente, ablui os filhos, troquei-me, almocei, fechei o barraco e saímos. A Vera queria ir de carro, eu estava usando sapatos novos.

Perguntei as horas no Empório do Senhor Valentim.

- Três horas.

Tomamos o ônibus.

Descemos na Rua Líbero Badaró. Eu ia ouvindo os comentários do “Quarto de Despejo”. Assim que entrei na livraria, fiquei emocionada com a afluência e já fui recebendo livros para autografar.

O senhor Lélio já estava na livraria, os garçons com seus trajes a rigor circulavam pela livraria ajeitando as mesas para os coquetéis. Os garçons cultos e amáveis do bufê Freire.

 

Foto: Arquivo Nacional

 

Eu era o alvo dos olhares. O Doutor Lélio de Castro Andrade, o meu ilustre editor, conduziu-me ao lugar apropriado para eu autografar. Não fiquei nervosa quando vi a afluência – fiquei alegre. Para uns as frases eram longas, para outros era cordialidade. Os meus filhos percorriam a livraria. Eram tantos livros para eu autografar, que eu não vi as horas passar. Os repórteres estavam presentes, fotografando-me.

A Última Hora foi buscar alguns favelados para fazer uma reportagem na livraria. Os favelados estavam abismados, vendo-me, eu, preta, entre os brancos, tratada como se fosse uma imperatriz.

Às 16 horas chegou o ministro Dr. João Batista Ramos, Ministro do trabalho. Que homem bonito! Que voz! O Audálio fez uma locução que o Ministro ia doar-me uma casa. O senhor Ministro estava ansioso para sair, porque tinha programa no rádio. A Vera nos empurrava para olhar o rosto do ministro e dizia: que homem bonito! Eu quero casar com um homem assim!

O Ministro sorriu.

Repreendi a Vera para não empurrar o senhor Ministro.

- Que senhor Ministro nada, eu sou João Batista e está acabado.

Escrevi um autógrafo para o ministro. Entreguei-lhe e agradeci a gentileza de ser padrinho do meu livro. Ele saiu com dificuldade, devido à afluência do povo. Não me foi possível tratar o Dr. João Batista com mais gentileza. Continuei autografando livros para a multidão. A esposa do Dr. Lélio de Castro Andrade estava presente, tratou-me com amabilidade.

O povo foi retirando-se, o Audálio despediu-se e pediu-me um abraço. Quis mover-me, mas os meus pés estavam adormecidos. Houve um incidente sem importância. Às nove e 15 fechamos a livraria. O Aldo pagou-me automóvel até a favela. Parei no ponto do bonde, para comprar pão e peixe para os filhos. O motorista era japonês, ficou horrorizado quando viu a favela.

- A senhora com a fama que tem mora aqui!? Credo! Eh! Brasil!

Sorri, achando graça do Japonês.

Deitamos vestidos porque estávamos cansados, mas eu estava alegre.

 

* Cadernos de Carolina Maria de Jesus, Arquivo Público Municipal de Sacramento (MG), revisão de Fernanda Miranda, editora do futuro site internet do IMS dedicado a Carolina Maria de Jesus. Texto anteriormente publicado em Casa de Alvenaria (1961), segundo livro da escritora.

Não matarás**

 

O fato que me horrorizou foi ver um soldado matar um preto. O policial deu-lhe voz de prisão. Ele era da roça. Saiu correndo assustado. O policial deu-lhe um tiro. A bala penetrou-lhe dentro do ouvido. O policial que lhe deu o tiro sorria, dizendo:

– Que pontaria que eu tenho! Vou ser campeão de tiro.

Com o pé ele movia o corpo sem vida do infausto e dizia:

– Deve ser baiano.

E eu fiquei pensando nos baianos, que eram obrigados a deixar a Bahia porque lá não chove e ser mortos pelos policiais sem motivo.

– Será que ele tem mãe? Quem é que vai chorar a sua morte?
Ele não brigou, não xingou, não havia motivos para matá-lo. Ele estava com um pacote, que foi desembrulhado. Veio na cidade para comprar remédios. Era casado, pai de dois filhos. Quando o delegado chegou, olhou o cadáver e mandou sepultá-lo. Ninguém sabia o seu nome. Pensei: leva-se vinte anos para criar um homem. E eles matam-se com tantas facilidades. Quem morre faz falta para alguém.
“Não matarás”. Esta advertência é do todo-poderoso, o Deus imortal. Mas o homem, o deus de barro, o deus-pó, mata. Quando sepultavam o preto, minha mãe dizia:

– Para ele tudo se acabou.

Pensei: é o nosso dever rezar, implorar a Deus para chover no Norte e assim eles terão possibilidades para ficar no seu torrão natal. Porque os que saem de suas terras não sabem se vão encontrar com Deus ou com o diabo. Fiquei nervosa e chorei. Ninguém pergunta a uma criança por que é que está chorando. É que eu estava com dó daquele homem. Ele merecia as minhas lágrimas. O soldado que matou o nortista era branco. O delegado era branco. E eu fiquei com medo dos brancos. E olhei a minha pele preta. Enquanto existirem ignorantes, hão de existir estas divisas de cores. Mas continuei pensando: por que será que o branco deve matar o preto? Será que Deus deu o mundo para eles e nós os pretos somos os invasores?

 

** Trecho de Um Brasil para os Brasileiros, caderno manuscrito inédito. Texto editado por Rachel Valença, coordenadora da área de Literatura do IMS. A partir deste caderno se editou e publicou na França Journal de Bitita (1982), traduzido para o português com o título Diário de Bitita.

 

A escritora Maria Carolina de Jesus, em foto de 13/12/1961 antes de embarcar para o Uruguai para lançar o livro "Quarto do Despejo". Acervo/Estadão