Há 60 anos, no dia 19 de agosto de 1960, uma senhora negra catadora de papel tornou-se o centro das atenções na Livraria Francisco Alves, palco do lançamento de seu primeiro livro, Quarto de despejo, no qual contava o cotidiano da favela do Canindé, em São Paulo, onde vivia com a família. Tudo o que se passou naquele dia, Carolina Maria de Jesus relatou em texto manuscrito em seu diário e aqui reproduzido para marcar a efeméride.
“Assim que entrei na livraria fiquei emocionada com a afluência e já fui recebendo livros para autografar (...). Eu era o alvo dos olhares.” O momento ficou registrado na série Cadernos de Carolina de Jesus, hoje sob a guarda do Arquivo Público Municipal de Sacramento (MG), sua terra natal.
Carolina tem parte de seu acervo aos cuidados do Instituto Moreira Salles e será motivo de uma exposição que o IMS Paulista prepara para 2021, com curadoria de Raquel Barreto e de Hélio Menezes. Um Brasil para os brasileiros, nome escolhido para o evento, é também título de um caderno inédito sob a responsabilidade da área de Literatura do instituto, que selecionou um de seus textos – Não matarás – para se somar a este post-homenagem aos 60 anos de lançamento de Quarto de despejo.
O IMS tem ainda em preparação um site dedicado especificamente a Carolina Maria de Jesus, sob a edição de Fernanda Miranda.
19 de Agosto de 1960*
Era quatro horas eu já estava preparando o almoço e carregando água, porque eu preciso ir na livraria Francisco Alves para autografar o meu livro: Quarto de Despejo. Tomei banho, recomendei aos filhos que não brigassem, para ir cortar o cabelo e voltar para favela que eu ia voltar para levá-los na livraria Francisco Alves à tarde. Tomei café e sai, fui de ônibus. Na Rua Líbero Badaró comprei quibe para comer porque sustenta várias horas. Quando cheguei na livraria já estava aberta entrei, galguei as escadas e fui autografar. O senhor Nelson Assumpção tratou-me com gentileza, o telefone tocou. O empregado foi avisar-me que era para mim. Fui atender, era o Gil Passarelli, perguntou-me até que hora eu ia ficar na livraria.
- Até às 11.
Disseram-me que havia falado com a Vera e que os meus filhos estavam no barbeiro. Continuei autografando, quando os repórteres chegaram e entrevistaram-me. O repórter é descendente de japonês. Autografei um livro para o Doutor Adhemar de Barros e pedi ao Senhor Gil Passarelli para levá-lo. O Dr. Lélio chegou, o Gil disse-lhe que ia levar o livro para o Dr Adhemar.
- Só com Audálio.
O repórter japonês pagou o livro. O Audálio chegou, conversou com o senhor Gil Passarelli, ele despediu-se, continuei autografando com o Audálio até as 12 horas. Chegou uma loira que queria falar com o escritor Paulo Dantas, que ela é escritora e mostrava os seus escritos e dizia que os seus manuscritos eram atraentes. O escritor Paulo ouvia com ódio interior, dava para perceber. Mas ele é escritor, tem que ser educado e tolerante. Ela aludia que o seu livro com uma capa sugestiva e boas publicidades poderia alcançar sucesso. Ela pediu-me um livro.
- Eu não posso dar livros porque o livro não é meu, eu recebo uma porcentagem dos livros.
O senhor Paulo Dantas deu-lhe um livro e nós saímos para almoçar. O Audálio disse-me para eu ir de carro, obedeci, tomei um carro e pedi ao motorista que avoasse. Fomos conversando. A conversa da atualidade. - Que os políticos infiltram-se na política, para melhorar a vida deles e deturpar a vida do povo. Que os preços vão galgando igual a águia no espaço. E os pobres é quem sofre. Percebo que o povo está revoltado. E assim, chegamos na favela. O motorista ficou horrorizado. Olhando a favela.
- O que é isso aqui, Dona Carolina?
- É o quarto de despejo de São Paulo.
- Credo! Ave-Maria! E como é que vocês vivem aqui?
- Nós, os favelados, somos os objetos fora do uso! Vivemos, com dificuldades. Para comer... temos que lutar, como se estivéssemos numa guerra!
- E vocês, aqui, sentem frio?
- Sentimos todas as agruras da vida.
Despedi do motorista e paguei- lhe 130 cruzeiros. Saí correndo, entrei no barraco, ouvi as vozes dos filhos.
- Olha a mamãe!
Encontrei água quente, ablui os filhos, troquei-me, almocei, fechei o barraco e saímos. A Vera queria ir de carro, eu estava usando sapatos novos.
Perguntei as horas no Empório do Senhor Valentim.
- Três horas.
Tomamos o ônibus.
Descemos na Rua Líbero Badaró. Eu ia ouvindo os comentários do “Quarto de Despejo”. Assim que entrei na livraria, fiquei emocionada com a afluência e já fui recebendo livros para autografar.
O senhor Lélio já estava na livraria, os garçons com seus trajes a rigor circulavam pela livraria ajeitando as mesas para os coquetéis. Os garçons cultos e amáveis do bufê Freire.
Eu era o alvo dos olhares. O Doutor Lélio de Castro Andrade, o meu ilustre editor, conduziu-me ao lugar apropriado para eu autografar. Não fiquei nervosa quando vi a afluência – fiquei alegre. Para uns as frases eram longas, para outros era cordialidade. Os meus filhos percorriam a livraria. Eram tantos livros para eu autografar, que eu não vi as horas passar. Os repórteres estavam presentes, fotografando-me.
A Última Hora foi buscar alguns favelados para fazer uma reportagem na livraria. Os favelados estavam abismados, vendo-me, eu, preta, entre os brancos, tratada como se fosse uma imperatriz.
Às 16 horas chegou o ministro Dr. João Batista Ramos, Ministro do trabalho. Que homem bonito! Que voz! O Audálio fez uma locução que o Ministro ia doar-me uma casa. O senhor Ministro estava ansioso para sair, porque tinha programa no rádio. A Vera nos empurrava para olhar o rosto do ministro e dizia: que homem bonito! Eu quero casar com um homem assim!
O Ministro sorriu.
Repreendi a Vera para não empurrar o senhor Ministro.
- Que senhor Ministro nada, eu sou João Batista e está acabado.
Escrevi um autógrafo para o ministro. Entreguei-lhe e agradeci a gentileza de ser padrinho do meu livro. Ele saiu com dificuldade, devido à afluência do povo. Não me foi possível tratar o Dr. João Batista com mais gentileza. Continuei autografando livros para a multidão. A esposa do Dr. Lélio de Castro Andrade estava presente, tratou-me com amabilidade.
O povo foi retirando-se, o Audálio despediu-se e pediu-me um abraço. Quis mover-me, mas os meus pés estavam adormecidos. Houve um incidente sem importância. Às nove e 15 fechamos a livraria. O Aldo pagou-me automóvel até a favela. Parei no ponto do bonde, para comprar pão e peixe para os filhos. O motorista era japonês, ficou horrorizado quando viu a favela.
- A senhora com a fama que tem mora aqui!? Credo! Eh! Brasil!
Sorri, achando graça do Japonês.
Deitamos vestidos porque estávamos cansados, mas eu estava alegre.
* Cadernos de Carolina Maria de Jesus, Arquivo Público Municipal de Sacramento (MG), revisão de Fernanda Miranda, editora do futuro site internet do IMS dedicado a Carolina Maria de Jesus. Texto anteriormente publicado em Casa de Alvenaria (1961), segundo livro da escritora.
Não matarás**
O fato que me horrorizou foi ver um soldado matar um preto. O policial deu-lhe voz de prisão. Ele era da roça. Saiu correndo assustado. O policial deu-lhe um tiro. A bala penetrou-lhe dentro do ouvido. O policial que lhe deu o tiro sorria, dizendo:
– Que pontaria que eu tenho! Vou ser campeão de tiro.
Com o pé ele movia o corpo sem vida do infausto e dizia:
– Deve ser baiano.
E eu fiquei pensando nos baianos, que eram obrigados a deixar a Bahia porque lá não chove e ser mortos pelos policiais sem motivo.
– Será que ele tem mãe? Quem é que vai chorar a sua morte?
Ele não brigou, não xingou, não havia motivos para matá-lo. Ele estava com um pacote, que foi desembrulhado. Veio na cidade para comprar remédios. Era casado, pai de dois filhos. Quando o delegado chegou, olhou o cadáver e mandou sepultá-lo. Ninguém sabia o seu nome. Pensei: leva-se vinte anos para criar um homem. E eles matam-se com tantas facilidades. Quem morre faz falta para alguém.
“Não matarás”. Esta advertência é do todo-poderoso, o Deus imortal. Mas o homem, o deus de barro, o deus-pó, mata. Quando sepultavam o preto, minha mãe dizia:
– Para ele tudo se acabou.
Pensei: é o nosso dever rezar, implorar a Deus para chover no Norte e assim eles terão possibilidades para ficar no seu torrão natal. Porque os que saem de suas terras não sabem se vão encontrar com Deus ou com o diabo. Fiquei nervosa e chorei. Ninguém pergunta a uma criança por que é que está chorando. É que eu estava com dó daquele homem. Ele merecia as minhas lágrimas. O soldado que matou o nortista era branco. O delegado era branco. E eu fiquei com medo dos brancos. E olhei a minha pele preta. Enquanto existirem ignorantes, hão de existir estas divisas de cores. Mas continuei pensando: por que será que o branco deve matar o preto? Será que Deus deu o mundo para eles e nós os pretos somos os invasores?
** Trecho de Um Brasil para os Brasileiros, caderno manuscrito inédito. Texto editado por Rachel Valença, coordenadora da área de Literatura do IMS. A partir deste caderno se editou e publicou na França Journal de Bitita (1982), traduzido para o português com o título Diário de Bitita.
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