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O assunto é cinema, cinema, cinema!

10 de julho de 2014

Cerca de 260 desenhos de Glauber Rocha acabam de ser incorporados ao acervo do Instituto Moreira Salles, a partir de um acordo de comodato firmado com o Tempo Glauber, até então responsável pela preservação dos desenhos do cineasta. Graças a um longo trabalho de Lúcia Rocha, mãe do cineasta, e Paloma Rocha, filha de Glauber, os originais foram reunidos e restaurados, para a boa conservação do papel. A transferência dos desenhos para o acervo do IMS permitirá sua guarda em perfeitas condições de preservação, bem como programar ações para a difusão desse material. São desenhos produzidos, em sua maioria, a partir da prisão do cineasta em uma manifestação política em 1965. Ilustrações em preto e branco ou em cores e ligeiros esboços a caneta numa ponta de papel, num caderno, em páginas de um roteiro. Não se referem diretamente a nenhum filme de Glauber, mas são todos desenhos de um artista que tinha todo o tempo o cinema na cabeça – e aqui, um lápis ou caneta na mão.

Saiba mais na página dedicada a Glauber Rocha no site do IMS.

 

Os primeiros filmes de Glauber, costumava dizer D. Lúcia, mãe do cineasta, não foram nenhum destes que ele realmente realizou e que todos nós mais ou menos conhecemos. Os primeiros, ele desenhou quando tinha apenas 9 ou 10 anos nas bobinas de papel da máquina registradora da loja O Adamastor, na rua Chile, em Salvador, onde ela trabalhava.

Ela conta que, intrigada com o frequente sumiço das bobinas, acabou descobrindo que os pequenos rolos de papel estavam se transformando em fita de cinema de brinquedo. Os filmes eram desenhados, quadrinho por quadrinho, nas bobinas pouco mais largas que um filme de verdade, e depois “projetados” para as outras crianças com quem Glauber costumava brincar de cinema: ele ia desenrolando e sonorizando o “filme”. Mostrava os desenhos e fazia os diálogos, os ruídos e a música. Algumas vezes, com uma participação mais viva dos “espectadores”, uma cena era dramatizada, interpretada ao vivo por todos, o “cineasta” e os “espectadores”. O primeiríssimo desses filmes talvez tenha sido uma história de cangaceiros chamada Faroeste na Bahia.

A lembrança do filho brincando de cinema deve ter levado D. Lúcia a, paciente e cuidadosamente, recolher os desenhos feitos depois da prisão, em novembro de 1965 – com Joaquim Pedro de Andrade, Antônio Callado, Mário Carneiro, Flávio Rangel, Jaime Rodrigues, Márcio Moreira Alves e Carlos Heitor Cony, num protesto contra a ditadura militar, diante do Hotel Glória, durante a realização de uma reunião da Organização dos Estados Americanos. Desenhos feitos e jogados fora. Muitas vezes ela teve que recompor o papel amassado e atirado no lixo com um ferro de passar roupa, tendo o cuidado de proteger a folha com um tecido bem grosso para que o calor do ferro não destruísse o desenho. Quando criança, além das bobinas da máquina registradora, qualquer papel servia para desenhar: a página de um caderno de escola, a folha em branco num livro de receitas da mãe.

Glauber não chegou exatamente a se dedicar ao desenho. Foi ao desenho levado pelo cinema, e depois de começar a dirigir filmes voltou ao desenho levado pelo cinema. Poderia afirmar, como Eisenstein: “Jamais aprendi a desenhar. É por isso que desenho e é assim que desenho”. Poderia, ainda como Eisenstein, dizer que “o desenho e a dança nascem da mesma fonte, não passam de duas variantes de uma mesma pulsão”. Talvez nem visse seus desenhos como desenhos, e sim como uma dança automática de sua mão no papel.

Desenhos de poucas linhas, curvas, que se movem rápidas no papel e mudam de direção a todo instante, como a figura do malandro, violão e revólver na mão, que a Fipresci, Federation Internationale de la Presse Cinematographique, usa nos diplomas dos Prêmios da Crítica Internacional. Figuras que são mais o gesto do desenhista que a forma acabada, figuras aqui e ali encaixadas ou limitadas por um quadro, moldura, tela. Desenhos que aparentemente surgiram sobre um outro, iniciado mas abandonado em meio: o que ia ser um rosto se cobre de outros traços que deixam a figura quase invisível por baixo da trama de riscos.

Muitas vezes uma página com uma anotação ou já com um desenho se enche de vinhetas: um cangaceiro, um cachorro, um cactus, figuras de braços abertos, brincadeiras com os amigos, como um rosto de homem gordo, cigarro no canto da boca, com o título Cacá aos 50 anos, brincadeira com Carlos Diegues. Traços econômicos, esboços, desenhos antes de um desenho, a forma condensada, meio ideia de desenho meio ideia de filme, imagem entrevista, sonhada, alucinada, aparição repentina. Nos desenhos da cadeia, por exemplo, algumas figuras, parece, pensam o projeto não realizado (mas muito desenhado, como na imagem acima) América nuestra: o fuzilamento do poeta Juan Morales (na imagem abaixo, três pequenas manchas escuras disparam contra a grande figura de um homem de braços abertos); outras, parece, pensam Terra em transe (as imagens fundadoras do projeto, de acordo com Glauber: o homem que dá um tiro no coração e Geraldo del Rey barbado e sujo com uma espada na mão para matar Paulo Autran).

Na prisão, além de desenhar, Glauber escrevia, conta Carlos Heitor Cony (A serpente no ventre da ovelha, revista Manchete, 5 de setembro de 1981): “Já tinha levantado a produção de Terra em transe e estava escrevendo cenas. Ele escrevia lá na prisão, em papel de embrulho”.

Pintor, fotógrafo, parceiro de Glauber em Di, Mário Carneiro conta como Glauber começou a desenhar na prisão em entrevista a Inácio Araújo (Carneiro define luz e ação do Cinema Novo, em Folha de S. Paulo, 2 de maio de 1995): “Durante 11 dias ficamos incomunicáveis. Mas o Iberê Camargo foi lá e disse ao carcereiro: Olha, tem um amigo aí que é pintor, ele não pode ficar sem seu material de pintura e de desenho, senão vai enlouquecer. Um dia, chegou o material. Comecei a fazer meus desenhos. E o Glauber acompanhava aquilo com o olho aceso. Uma hora, ele disse: ‘Ô Mário, como é esse negócio aí de desenho?’ Eu disse: ‘É que nem cinema, você pega a câmera e sai fazendo’. Ele disse: ‘Desenha aí um cavalo para eu ver’. Aí eu desenhei um cavalo. Aí ele disse: ‘Me dá um bloco desses?’ Eu dei. ‘Você me empresta uns lápis desses?’ Eu disse: ‘Fica com essa caixa de lápis de cor’. Aí ele se encarapitou na caminha dele, riscando. A certa hora as luzes começaram a se apagar. Quinze minutos depois eles acendiam a luz, deixavam um minuto, apagavam de novo. Era um processo para te deixar atordoado. Enquanto isso eles davam muita porrada nos caras embaixo da gente. Eu já estava meio dormindo. Aí ouvi aquele grito no meio da noite: ‘Ultrapassei o figurativo, cheguei ao abstrato!’ – aquele jeito do Glauber. Todo mundo se levantou para ver os desenhos. Ele começou a mostrar uma série de Cristos ligados por um cordão umbilical. Parecia que ele estava renascendo, porque ele já estava se sentindo deprimido pela impossibilidade de se expressar de alguma maneira”.

Nem todas as ilustrações de Glauber são linhas que correm no papel como escrita automática, é verdade. Existem também desenhos mais elaborados: pastéis, guaches, aquarelas e lápis de cor. Alguns temas se repetem. Um exemplo: um homem, braços e pernas abertos, uma estrela sobre a cabeça, um coração por baixo de seu braço esquerdo, um rabisco circular por baixo do braço direito, foi desenhado de dois diferentes modos, ambos a lápis, na prisão, em folhas de 30 x 21 centímetros, assinados e datados: Rio, prisão, 1965. Outro exemplo: cangaceiros e Cristos. Um de seus Cristos coloridos, aparece (muito rapidamente, quase nem se vê) a certa altura em Di Cavalcanti nas mãos do cineasta (ele pega o desenho sobre a mesa e mostra rapidamente para a câmera). Entre os desenhos de Glauber conservados pelo Tempo Glauber e agora sob a guarda do Instituto Moreira Salles, estão muitos Cristos, assinados mas sem datas (como a maior parte das ilustrações de Glauber), provavelmente feitos em novembro de 1965, na cadeia, como o Cristo fracassado, a cabeça de Cristo e o Cristo na cruz (imagem abaixo).

Guiada pela intuição antes de ser organizada pela razão, a linha rápida, ágil, monta a figura quase com um risco só: a ponta fina da caneta esferográfica dança solta no espaço; a ponta maleável da hidrográfica e a ponta suave de um lápis macio pressionam o papel para aqui e ali aumentar a espessura da linha. Nos desenhos feitos na prisão, a ponta dura de um toco de lápis ou de uma esferográfica quase corta o papel: um desenho tem como título Liberdade e traz abaixo da assinatura a indicação prisão, 1965. Outro tem o título A justiça; outro ainda tem o título Vox populi. E o desenho Octeto do Glória traz no verso uma carta para D. Lúcia dizendo que estava tudo bem:

“Turma geral: Como veem estou me iniciando no desenho e despertando entusiasmos gerais. Aqui a cela está boa. Estamos ouvindo o jogo. Foi formado um governo e eu fui eleito povo. Joaquim é o Ministro da Cultura e Mário o despenseiro. O Cony fala muito e o Marcito ronca terrivelmente. O Callado faz conferências sobre romance e Flávio sobre teatro. O presidente aqui é o Jaime. Não conhecemos os termos do contrato mas não fazemos filmes comerciais. Homem nessa terra pra ter validade… Moral excelente. Abraços no Saraceni, Odete, Isabela, Paulo Gil, Dico, David, Cacá, Joselito, Necy, Walter e todos os que estão aí – Glauburu.”

Passar os olhos pelos desenhos de Glauber ajuda a perceber um outro impulso que prepara o trabalho de improvisação presente em seu cinema. Ele não propriamente aprendeu a desenhar, apenas deixava-se guiar pelo impulso, pela intuição. As formas parecem às vezes jogadas no papel como se o desenhista, no momento do desenho, estivesse pensando numa outra coisa e deixando a mão correr por conta própria. Ou descobrindo no desenho o que estava pensando sem se dar conta disso.

Depois de desenhar, com frequência, jogava os desenhos fora. O desenho valia só enquanto estava sendo desenhado, modo de ver/grafar o pensamento antes de a coisa pensada se articular em palavras. De qualquer modo, seus desenhos podem mesmo ser vistos como desenhos. E também como pedaços de filmes. São figuras desenhadas por duas cabeças: uma age no papel, a outra pensa o cinema. Pensa um cinema gravura, pintura, desenho, para romper os limites da transcrição direta e objetiva da realidade. Um cinema que fosse “pintura em movimento com som”.

No papel, como se feitos com uma câmera na mão, o que salta aos olhos nos desenhos de Glauber é a voz do cineasta repetindo em três dimensões na televisão, na série que fez para o programa Abertura, “o assunto é cinema, cinema, cinema!”. Eles são um convite para ver os filmes que Glauber realizou em fita de cinema mesmo, como se tivessem sido filmados com uma ideia na cabeça e um lápis na mão.

 

José Carlos Avellar, cineasta, curador e crítico de cinema, foi coordenador da área no IMS de 2008 até março de 2016, quando faleceu.

 

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