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O indivíduo mais importante que existe

23 de junho de 2017

A série Primeira Vista traz textos de ficção inéditos, escritos a partir de fotografias selecionadas no acervo do Instituto Moreira Salles. O autor escreve sem ter informação nenhuma sobre a imagem, contando apenas com o estímulo visual. O anúncio clicado por David Drew Zingg inspirou André Sant’Anna a escrever “O indivíduo mais importante que existe”. 

Cartaz na Avenida São João com Avenida Ipiranga. São Paulo, 1978. David Drew Zingg / Acervo IMS

 

Você era apenas um organismo unicelular que nasceu fazendo parte de uma manada de indivíduos unicelulares sem cérebro para realizar sua tarefa simplicíssima de reproduzir o máximo possível o seu gene único, até que Deus, ou seria o acaso? – o acaso é Deus? – não, sim, Deus existe, Deus existe mas eu sou contra – onde eu estava mesmo? Eu estava dizendo que você não tinha o dom do raciocínio, não tinha a menor noção do que estava fazendo neste planetinha azul minúsculo e ridículo, perdido na vastidão do Cosmo, se reproduzindo assexuadamente e deixando que a Seleção Natural, Deus, o acaso, aquilo que você não conhece, aquilo que você não entende, seu burro, fosse modificando ao acaso, pela vontade de Deus, a sua genética primária unicelular, e você ganhou novos genes, foi se enchendo de células, foi bactéria, foi minhoquinha, foi inseto nojento, foi peixe esquisito etc. etc. até se tornar esse troço importantíssimo, esse troço sagrado, que é o ser-humano.

Mesmo depois de ganhar um cérebro, aparelho impressionante que Deus inventou a partir de carbono e água, você continuou burro e só queria saber de ingerir matéria orgânica para preencher o vazio interior, produzir cocô e ficar se esfregando em colegas de espécie toda vez que sentia inconscientemente o odor dos hormônios delxs. Você e seus coleguinhas de espécie ficavam lá se esfregando, se lambendo, se melecando, fazendo sexo na frente de todo mundo, na frente de toda a manada, sem a menor vergonha na cara, com aquela cara inocente de taradx. Mas Deus – ou foi o acaso? – é uma entidade muito doida, maior loucura, e encheu o seu cérebro de paradas muito loucas do tipo o inconsciente, o ego, o superego, o id, essas porra, essas parada, o complexo de Édipo, a vergonha da própria natureza animal e você, tremendo animal arrogante, meio burro, meio que não se conformou mais em apenas ficar ingerindo matéria orgânica, ficar fazendo cocô e ficar se esfregando nos seus coleguinhas de espécie, com aquela cara de cachorrx que fareja hormônios nxs coleguinhas de espécie. Não, meu estúpido colega de espécie… O acaso é sádico – Deus? – e a Seleção Natural fez com que você e a sua turma desenvolvessem uma parada muito louca na mente doentia de vocês, que levou a sua espécie impressionantemente incrível e superior a ir muito além do carbono, da água e do cocô. Você ganhou um espírito, tadinho.

Agora, para se esfregar nx coleguinha de espécie, não basta sentir inconscientemente o cheiro dos hormônios delx. Antes de ir lá e ficar lambendo, chupando e trocando fluídos com x coleguinha de espécie, você tem que tomar um vinhozinho com elx, tem que dar beijinho, escutar a música da novela, comer fondue à luz de velas, ouvir jazz, escrever poemas de amor, compor sinfonias, escrever o Fausto do Goethe, torturar virgens raptadas na tribo inimiga, ganhar dinheiro, fazer ginástica usando uma camiseta verde fosforescente e, assim, enfim, ter algum tipo de importância que faça com que os indivíduos com os quais você quer se esfregar, lamber e trocar fluidos melequentos se sintam sexualmente atraídxs por você.

Transmitir os seus genes ao máximo possível de indivíduos da sua espécie incrível nem é mais o objetivo mais importante. O mais importante agora é a sua importância como personagem mais importante que existe “no espetáculo cheio de sons e fúrias que nada significa”, para que xs coleguinhas de espécie e você próprix, a nível de indivíduo, jamais percebam que você e seus coleguinhas de espécie burros, não têm a menor importância no movimento de expansão das galáxias, não têm a menor importância para o Deus – como assim o acaso? – que está lá, fazendo as parada muito loucas dele lá, misturando carbono com água, abrindo buracos negros comedores de galáxias lá no Cosmo, essas porra todas, ignorando baldes a existência de você enquanto indivíduo espiritual e pretensioso.

Sendo assim, “semelhante meu” – semelhante meu? – “meu irmão” – meu irmão?, você vai fazer de tudo para simular uma grande importância na sua existência. Você vai fingir para si mesmo que é um herói, aquele troço sagrado, troço incrível a nível de indivíduo da espécie escolhida por Deus para ser a melhor. Você vai liderar um movimento revolucionário que mudará a história da espécie, vai escrever o romance onde tudo estará escrito, vai pensar o discurso filosófico que elucidará os mistérios da existência, vai fazer mais de mil gols, vai se integrar ao todo e atingir o Nirvana, vai cometer um ato terrorista no metrô, matando meia dúzia de criancinhas, um trabalhador proletário, um professor de matemática e duas senhoras de idade.

Ou você vai sair por aí, com um cabelo todo assim na cabeça, sacudindo os braços, a musculatura definidaça, com um andar, um jogo de cintura de quem é indivíduo diferenciado.

André Sant’Anna é escritor, músico e roteirista. Publicou os livros Sexo e amizadeO paraíso é bem bacanaInverdades, O Brasil é bom e a trilogia Amor.