Uma das seções da exposição Desenhando para um Palácio - o Itamaraty e o design, em exibição no Palácio Itamaraty até dia 27 de maio, é a recriação de uma foto de 1968 de Marcel Gautherot: o Gabinete do Ministro das Relações Exteriores, tal como originalmente mobiliado pelo arquiteto Sérgio Rodrigues. Os registros de Gautherot dos interiores do Palácio Itamaraty em 1968 – que pertencem ao acervo do fotógrafo abrigado no Instituto Moreira Salles – desempenharam um papel essencial na curadoria da exposição. Além de permitir a identificação e localização de vários móveis de valor histórico, dos quais só se tinha notícia por meio de menções sumárias na documentação contábil, o olhar de Gautherot foi determinante para a compreensão dos projetos de interiores originais e sua integração com o programa arquitetônico do Palácio.
O projeto de exposição surgiu a partir da descoberta de uma prestação de contas, preparada pelo Presidente da Comissão de Transferência do Itamaraty para Brasília, Embaixador Wladimir Murtinho, em resposta a questionamentos da Câmara dos Deputados sobre os gastos com a construção e decoração do Palácio. O documento afirmava:
“Cumpre antes esclarecer que, na sua quase totalidade, as peças foram desenhadas especialmente para o Palácio, executando-se protótipos das peças mais importantes. Não quero deixar de mencionar, pela importantes contribuições que representam para o desenho do móvel brasileiro, os estudos feitos pelo arquiteto Sérgio Rodrigues, autor dos móveis do Gabinete do Ministério, do Secretário-Geral, do Subsecretário, do Salão dos Embaixadores e do Vestíbulo de Honra; o arquiteto Bernardo Figueiredo, criador dos móveis da Sala do Conselho, do pequeno Salão do Terraço e das salas de almoço; o Senhor Jorge Hue, em colaboração, em colaboração em Bernardo Figueiredo, é o responsável pela ambientação da Salão de Honra; Joaquim Tenreiro, por sua vez, desenhou as cadeiras e as mesas do Salão de Banquetes.”
O documento descrevia um sofisticado planejamento de interiores, com encomendas de desenhos para funções específicas a um grupo de designers exclusivamente brasileiro. Como a pesquisa curatorial confirmaria mais tarde, não houve, na segunda metade do século XX, outro caso de mobiliário palaciano encomendado a uma escola nacional de designers. Nos anos 60 estava em pleno auge o “estilo internacional” em arquitetura, e o padrão de mobiliário de representação era a Bauhaus, Le Corbusier, Florence Knoll e Charles e Ray Eames. Mesmo Anna Maria Niemeyer, nos seus interiores para o Alvorada, desenhou móveis nesse estilo, quando não utilizou diretamente o mobiliário bauhausiano de Mies Van der Rohe.
Porém, como os interiores do Itamaraty haviam sido alterados ao longo dos anos, e o documento não trazia ilustrações, era necessário, antes de tudo, achar a mobília, dispersa pelo Ministério. Do Japão, o Embaixador André Corrêa do Lago lembrou que Marcel Gautherot havia fotografado a recepção à Rainha Elizabeth II, realizada no Itamaraty em 1968. As fotos estavam no IMS, que gentilmente compartilhou o material.
Gautherot havia fotografado não somente a recepção à rainha, mas também os interiores do Palácio Itamaraty, e havia uma correspondência quase perfeita entre a lista de móveis da prestação de contas e as imagens. Assim, foram identificadas diversas peças, principalmente de Bernardo Figueiredo. A maior contribuição das fotos, porém, foi na recuperação dos projetos de interiores de Sérgio Rodrigues. Um pequeno conjunto de nove fotos tiradas no interior do Gabinete do Chanceler revelava um designer bem diferente da bonomia e informalidade dos almofadões da Poltrona Mole, ou das formas leves e galhardamente ousadas da poltrona Oscar.
O que se via era um mobiliário pesado, massivo, intimidante, feito de peças grossas de jacarandá de seção quadrada ou retangular. Os sofás e poltronas eram estofados em couro ou veludo escuros, muitas vezes em capitonné, lembrando o pomposo mobiliário burguês do século XIX. A imponência e opulência do mobiliário eram acentuadas pela disposição espacial. Os móveis se agrupavam em conjuntos compactos e simétricos, colocados sobre grandes tapetes e com imensos vazios em volta. Os conjuntos ficavam centralizados junto às paredes leste e oeste de cada sala, com um sofá ou escrivaninha central, para o qual convergia o olhar. Uma obra de arte, também pendurada no meio de cada parede, contribuía para acentuar o caráter rígido da composição.
[Clique na miniatura à direita para ver a imagem correspondente em tamanho maior]
Esses grandes volumes isolados, de uma simetria austera, conferiam aos interiores do gabinete do chanceler uma monumentalidade brutalista, impossível de se deduzir das poucas plantas de interiores conservadas, mas que Gautherot soubera captar perfeitamente. Nas fotos de outros interiores de representação, como o Congresso, o Alvorada e o Brasília Palace Hotel, Gautherot não encontrou nada semelhante. O que ele registrou foram conjuntos de estar, espalhados um pouco casualmente, apequenados nos imensos vazios dos saguões de Niemeyer.
A mesma disposição simétrica e monumental se observava no projeto de Jorge Hue e Bernardo Figueiredo para os espaços de representação. No Salão de Honra, duas fileiras de sofás e poltronas simétricas culminavam no enorme e multicolorido Sofá Rei, onde anfitrião e autoridade visitante se sentariam em posição central, à vista de todos. E, assim como no caso de Sérgio Rodrigues, nas demais salas, os designers distribuíram o mobiliário de forma casual. Seria a monumentalidade simétrica dos ambientes de representação uma solução a que haviam chegado, por caminhos distintos, os três designers?
Os espaços do palácio Itamaraty foram concebidos para serem percorridos nas sucessivas etapas de uma visita oficial. Se a arquitetura do Palácio Itamaraty é de Oscar Niemeyer, esse programa, baseado no próprio protocolo de uma visita oficial, foi o resultado de uma reflexão conjunta do arquiteto com dois funcionários do Ministério: o Embaixador Wladimir Murtinho e o arquiteto-chefe do Itamaraty, Olavo Redig de Campos. Eles foram os responsáveis por coordenar, dentro do Ministério, o debate interno sobre o edifício, e, em seguida, transmitir as demandas resultantes a Niemeyer.
Também coube aos dois a organização dos interiores, que desempenham um papel fundamental, perfeitamente integrado ao programa arquitetônico: não só organizam o fluxo e o posicionamento das pessoas, mas orientam o olhar diretamente para a pessoa de maior hierarquia. Não sobreviveram os briefings de Murtinho e Olavo aos designers, mas algumas pistas de suas ideias foram conservadas em uma entrevista à revista Connaissance des Arts, em 1968:
“Quanto aos móveis, foram desenhados segundo as exigências da diplomacia. As pessoas que vivem no palácio, explica o Embaixador Murtinho, muitas vezes são de idade. Se você os senta numa Mies van der Rohe, não conseguem mais se levantar. Também é necessário que se possa falar-lhes ao pé do ouvido ou traduzir-lhes uma conversa. Nossas poltronas são, portanto, fartas e sem rebuscamento inútil. Salvo pelo salão de recepção do ministro - onde elas serão rijas, incômodas, intimidantes. Não se vai ao ministro para brincar. É necessário um certo aparato.”
Ninguém mais sensível que Marcel Gautherot ao potencial dramático das grandes formas plásticas de Niemeyer contra os vazios do Planalto Central. O mesmo efeito foi explorado em suas fotos do mobiliário do Itamaraty, que contêm algumas composições de uma simetria e frontalidade raros não só em outros registros de ambientes, mas em sua produção como um todo. Essa particularidade da série do Itamaraty reflete a especificidade hierática do projeto de interiores: a expressão espacial da autoridade política por meio de móveis imponentes, organizados numa simetria monumental.
Heitor Granafei é Secretário-Executivo da RE50 - Comissão do cinquentenário do Palácio Itamaraty, e curador da exposição Desenhando para um Palácio - o Itamaraty e o design