Marguerite Tollemache nasceu na Inglaterra em 1818, embora não se tenha registro do mês, em uma família escocesa (as fontes divergem) de origem nobre, os Purves. Marguerite tornou-se Tollemache em 1846, ao se casar com William Augustus Tollemache, apenas um ano mais velho que ela, vindo de família inglesa ainda mais nobre, e influente até hoje no Reino Unido. Casou-se um tanto tarde, aos 27, idade em que a maioria das moças de sua época já estava rodeada de filhos. Que, aliás, ela não teve. Era profundamente religiosa, culta e gostava de arte. Esteve no Brasil entre 1853 e 1855, acompanhando o marido, provavelmente em missão diplomática, e registrou o país em desenhos reunidos em um caderno de 40 imagens que integra a coleção Martha e Erico Stickel, pertencente ao Instituto Moreira Salles desde 2008. Marguerite Tollemache é a única representante do sexo feminino no acervo de iconografia do IMS. E, com uma rara exceção, esses são os trabalhos conhecidos da artista, ao menos publicamente.
Provavelmente não são os únicos. Porém, encontrar Marguerite e sua obra pictórica não é tarefa fácil. Todos os dados sobre a inglesa foram recolhidos aos poucos, depois de buscas e mais buscas pelo vasto mundo da internet, que entrega de sites de genealogia a censos na Inglaterra. Isso faz a montagem de um perfil (ainda incompleto) da sra. Tollemache assemelhar-se à construção de um intrincado quebra-cabeças. Quem procurar mais pistas sobre a desenhista Tollemache encontrará quase sempre referências (dispersas, pequenas) sobre a escritora Tollemache, autora de quatro obras, três delas sobre temas religiosos: Many Voices (Muitas vozes), de 1883; sua sequência, Spanish Mystics (Místicos espanhóis), de 1886; e French Jansenists (Jansenistas franceses), de 1893. Em todos ela esboça breves biografias e compila excertos de textos de religiosos cristãos de diversos tempos e origens, de São Clemente a Savonarola, de Santa Teresa de Ávila a São Tomás de Aquino. O quarto livro, Spanish Towns and Spanish Pictures (Cidades espanholas e retratos espanhóis, de 1870), registra sua passagem pela Espanha no ano anterior, atraída pela arte local – o que demonstra sua curiosidade pelo mundo. É uma espécie de diário, no qual anota (mas não desenha) suas impressões sobre as cidades, a população e, principalmente, sobre as igrejas e obras de arte visitadas em museus e galerias, com especial apreço por aquelas de inspiração religiosa.
Entretanto, nada se sabe sobre sua formação, se estudou artes mais a fundo (é certo que toda moça prendada aprendia a desenhar um pouco) ou quantos trabalhos existem além dos que estão no acervo do IMS. Os 40 desenhos em grafite e nanquim que compõem o álbum da coleção Stickel revelam, em sua maior parte, os contornos das matas e montanhas exuberantes do Rio de Janeiro e arredores, com alguns poucos interiores feitos em delicados tons pastéis. São desenhos detalhados, com senso de perspectiva e profundidade, mostrando que foram feitos por alguém com talento e alguma técnica. Até onde a vista alcança, porém, um único trabalho, uma panorâmica da Baía de Guanabara intitulada Bay of Rio from San Domingo (Baía do Rio a partir de San Domingo) e datada de 13 de abril de 1855, foi impresso posteriormente como litografia. Isso foi feito em Londres, no mesmo ano, pelas mãos de Paul Gauci, editor, paisagista e litógrafo que expôs diversas vezes na Royal Academy entre 1834 e 1863. Gauci era um nome prestigiado, e o fato de ter editado um trabalho de Marguerite diz algo a respeito da qualidade da obra da inglesa.
“O conjunto é muito bom, ela usa carvão, tem técnica, então realmente temos curiosidade de saber como ela aprendeu a desenhar”, diz Julia Kovensky, coordenadora de iconografia do IMS, que também já conversou com diversos pesquisadores para tentar achar novas pistas sobre a artista. “Se ela fez esse álbum sobre o Brasil, por que não teria feito sobre outras viagens?”, indaga Julia. Novas buscas na internet levaram a pelo menos um desenho de Marguerite não pertencente à coleção do IMS. É um esboço de aquarela sobre Verona, que foi a leilão em um site britânico em 2016. A assinatura da autora é visível. Não é possível afirmar, porém, se a inglesa visitou mesmo a cidade italiana ou se desenhou a partir de outras obras de arte, o que seria muito comum.
Arquiteta de formação, Francis Lee, que trabalhou durante 13 anos com o casal Stickel na organização da coleção, e posteriormente no IMS, quando as obras foram incorporadas ao acervo do instituto, lembra que Erico sentia muito não ter mais informações sobre a autora do álbum, adquirido por ele em um lote maior pertencente a outro colecionador. No livro Uma pequena biblioteca particular – Subsídios para o estudo da iconografia no Brasil (Edusp e Imprensa Oficial, 2004), Stickel chegou a identificar Marguerite como funcionária da embaixada britânica na época de sua passagem pelo país, mas uma ata do Ministério das Relações Exteriores do Brasil daquele período, também encontrada na internet, registra apenas a presença de William, não a da esposa. Ou seja, ela veio no papel de acompanhante. Uma acompanhante curiosa e talentosa, decerto.
Revendo agora os desenhos e alguns de seus títulos, Francis acredita que a passagem do casal Tollemache pelo país estava ligada aos negócios britânicos por aqui, tanto que checou se havia alguma menção aos dois no livro Presença britânica no Brasil (1808-1914), publicado em 1987 pela editora Paubrasil. “Não há, mas o livro descreve, em algumas páginas, os esforços do futuro Barão de Mauá para a construção da estrada de ferro que ligaria o Porto da Estrela, próximo à Lagoa Rodrigo de Freitas, aos pés da serra de Petrópolis. Foi uma época de grande interesse e parceria dos ingleses na construção de ferrovias aqui”, conta Francis, hoje trabalhando no Instituto Hercule Florence, que comprou a biblioteca dos Stickel. “O casal, pelo visto, ficou hospedado em uma bela casa no meio da mata, chamada The Spot, que ela registra nos desenhos, e tinha acesso a residências oficiais. Em 7 de março de 1855 estava de volta ao Rio, depois de uma viagem a Petrópolis, e em abril já se encontrava no navio a caminho da Europa”.
The Spot é objeto de quatro desenhos de Marguerite, incluindo três belos interiores, os únicos trabalhos coloridos no lote. Os títulos de outros desenhos como Petropolis near the Baron de Maua’s House (Petrópolis, perto da casa do Barão de Mauá, de 6 de março de 1855), e British Legation - Caminho Novo de Botafogo (Missão diplomática britânica – Caminho novo de Botafogo, de 1854) comprovam a hipótese da visita diplomática de negócios ao Rio. Ouvidos pelo IMS, diversos pesquisadores que trabalham com o tema de mulheres escritoras e artistas viajantes também não tinham informações sobre Marguerite. É um caso bem diferente da igualmente inglesa Maria Graham, provavelmente uma das mais conhecidas e estudadas viajantes, que publicou mais de uma dezena de obras, boa parte delas a partir de suas andanças pelo mundo. Pintora, desenhista, escritora e historiadora, Graham esteve por três vezes no Brasil e transformou sua passagem no livro Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821, 1822 e 1823 (Diário de uma viagem ao Brasil com residência por lá durante parte dos anos 1821, 1822 e 1823), ilustrado com gravuras feitas sobre seus desenhos e aquarelas e também de Augustus Earle, pintor que conheceu no país. Com exceção das viajantes profissionais, de formação naturalista ou jornalística, a maioria dessas mulheres registrava textos e, eventualmente, desenhos nos diários, sem a menor pretensão de publicá-los algum dia.
Marguerite Tollemache também foi encontrada em um artigo da acadêmica espanhola Blanca Krauel Heredia, da Universidade de Málaga. Viajando por Andalucía: el testimonio de algunas escritoras victorianas (Viajando pela Andaluzia: o testemunho de algumas escritoras vitorianas) analisa as impressões deixadas por seis autoras inglesas, entre elas a sra. William Augustus Tollemache, sobre o país que visitaram entre 1866 e 1881. Algumas eram bem conhecidas, como George Eliot (pseudônimo de Mary Ann Evans, 1819-1880) e Matilda Betham-Edwards (1836-1919). Blanca, porém, também não apresenta muitas informações biográficas sobre Marguerite, anotando que ela pretendia provavelmente seguir os passos do historiador e escritor britânico William Stirling Maxwell (1818-1878), que escreveu sobre arte espanhola depois de visitar o país em 1843. O livro de Marguerite analisado pela professora de Málaga é Spanish Towns and Spanish Pictures, dedicado a Maxwell.
No ensaio, Blanca destaca algumas observações feitas pela sra. Tollemache, como sua visão sobre a catedral de Granada, que achou “decepcionante”, considerando seu estilo “mais pagão do que cristão”. A inglesa também detalhou várias obras de arte, como alguns dos quadros do sevilhano Bartolomé Murillo (1617-1682), entre eles os que representavam o milagre da multiplicação dos pães e dos peixes. Emocionou-se em Alhambra, complexo de palácios em Granada, e anotou, quando soube que o governo vendia ou alugava algumas torres da muralha, que “seria uma bela residência de verão”. Aparentemente não chegou a ver nenhuma corrida de touros, mas recolheu no livro opiniões de outros visitantes estrangeiros sobre o tradicional evento, considerado cruel por quase todos. Religiosa que era, assistiu a missas, e em muitos momentos lamentou a falta de respeito ao culto católico manifestada por alguns compatriotas, anglicanos como ela. “Parecem esquecer que estão na casa de Deus, e que boa parte do serviço anglicano procede do missal católico”, escreveu.
A profunda devoção era um ponto de contato entre Marguerite e sua cunhada Georgina Cowper-Temple, irmã de seu marido e figura proeminente na sociedade vitoriana. E graças à rica (em vários sentidos) história de Georgina chega-se um pouco mais perto de Marguerite. A grande amizade entre as duas é mencionada no livro Reformers, patrons and philanthropists – The Cowper-Temples and High Politics in Victorian England, (Reformistas, patronos e filantropos – Os Cowper-Temples e a alta política na Inglaterra vitoriana), de James Gregory, publicado em 2010. Na trajetória do casal de mecenas está a figura de Marguerite, considerada por William, marido de Georgina, um “ideal da feminilidade”, e descrita pelo autor como “inteligente e bela”.
Tampouco a beleza pode ser totalmente confirmada, pelo menos na única fotografia que se encontrou de Marguerite, em que está justamente ao lado da cunhada, durante um chá, of course. O perfil é suave, mas a vestimenta pesada da época, incluindo a touca sem graça, deixam pouca margem para uma observação mais detalhada. Em um dos trechos do livro Gregory destaca que ela, chamada em família de Magsie, foi não apenas uma amiga dedicada, mas também uma “forte influência” sobre Georgina, principalmente no que diz respeito à questão religiosa. Não parece comentar na obra, porém, o pendor artístico de Marguerite.
Um censo realizado na Inglaterra em 1881 registra o casal William (que foi capitão da marinha britânica) e Marguerite Tollemache, ambos com 63 anos, morando em uma casa em Nutfield, Surrey, no sudeste da Inglaterra, na companhia de quatro empregados (governanta, motorista, cozinheira e faxineira). Ela morreu em 1896, aos 78 anos, quinze antes do marido. E isso é tudo o que se sabe, pelo menos até agora, sobre a artista. Cartas para a redação do site do IMS, por favor.