Idioma EN
Contraste

Por Dentro dos Acervos Veja Mais +

“O poema é um poema só”

27 de setembro de 2022

Ao contrário do que acontecera em 1947, quando João Cabral de Melo Neto trabalhou como vice-cônsul no Consulado Geral de Barcelona e conviveu com a intelectualidade local, dez anos depois, no novo posto, em Sevilha, o poeta pernambucano se aproximou de artistas populares: cantores, guitarristas e bailarinos de flamenco. Nas horas de folga, em vez de rodar a prensa tipográfica manual com que fazia edições sob o selo O Livro Inconsútil, seu hobby na capital da Catalunha, passou a frequentar as noites do Cortijo El Guajiro, na capital andaluz, ouvindo ou vendo a música e a dança flamencas nessa região do sul da Espanha em que a influência árabe e cigana é fascinante.

Ao lado da mulher, Stella, e, a essa altura, já pai de Rodrigo, Inês e Isabel, ele não só era visto nas casas de show como convidava bailarinos para recepcionar brasileiros que o visitavam na sua residência ou na cidade. Nessa atmosfera sevilhana germinou o poema “A palo seco”, expressão espanhola que significa franco, direto, sem rodeios.

Em 11 de dezembro de 1958, depois de deixar Sevilha e ainda se instalando em Marselha, o posto seguinte, tratou logo de escrever a Decio de Almeida Prado pedindo-lhe que publicasse o poema no Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo, então sob a direção do crítico paulista.

                                                                                                                                                        Clique na imagem para ampliá-la
Carta de João Cabral de Melo Neto a Decio de Almeida Prado, em 11/12/1958. Acervo Decio de Almeida Prado/ IMS

 

 

Meu caro Décio,
aqui vai um poema para seu suplemento. Não sei se v. ainda está interessado em poemas deste seu amigo. Em todo caso, como não quero deixar de receber a assinatura que v. tão gentilmente me envia, ofereço este “A palo seco”. Se não servir, nem para pagar uma nova assinatura do suplemento, mande-me dizer, que lhe mandarei moeda melhor, isto é, dinheiro mesmo. O poema é um poema só. Sei que é grande para o jornal mas receio que, partido, desapareça completamente o sentido. Quem sabe se, com um tipo miúdo, não o colocará v. todo de uma vez?
Outra coisa: mudei de posto e de endereço. Está claro que continuo às suas ordens. Mas lhe seria muito difícil avisar à expedição para consignar a mudança?
Um abraço no A. Candido. Outro para v. do seu
João Cabral de Melo Neto

“O poema é um poema só”, alerta o poeta, reconhecendo-lhe a extensão e possível inadequação para jornal. A experiência de doublé de editor, no entanto, o fez rapidamente imaginar uma letra de tamanho menor e, de cabeça, compor a página. Não foi outra a ideia do experiente Decio de Almeida Prado, como veremos adiante. Ele vinha do grupo de jovens paulistas criadores da revista Clima, que circulou entre 1941 e 1944, e do qual faziam parte Antonio Candido, Paulo Emílio Salles Gomes e outros. Em 1956 fundaram o prestigioso Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo, sob a direção de Decio, que assinava D.A.P. e contava com colaboradores do quilate de João Cabral, Manuel Bandeira e Drummond.

Carta recebida, Decio conservou-a em seu arquivo, hoje sob a guarda do IMS. “A palo seco” sairia lindamente publicado no Suplemento de 21 de março de 1959, com ilustrações de Fernando Lemos. Dedicado, como se vê no jornal, ao poeta e crítico Rafael Santos Torroella, reconhecido autor de obras sobre Miró, Picasso e Salvador Dalí.

                                                                                                                                                     Clique na imagem para ampliá-la
Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo com o poema A palo seco, de João Cabral de Melo Nato. 21/3/1959. Acervo Decio de Almeida Prado/ IMS

 

Dividido em quatro segmentos, de fato, o poema não poderia ser publicado em partes sem prejuízo de uma unidade que se estrutura em crescendo. Na estrofe de abertura do primeiro segmento lê-se a definição do cante a palo seco, espécie de canto (cante) a capela dos ciganos:

Se diz a palo seco
o cante sem guitarra;
o cante sem: o cante;
o cante sem mais nada;

É uma estrofe quase didática, não fosse a beleza com que, por meio da repetição da preposição “sem”, o poeta marca, também no estilo a palo seco, a solidão desse tipo de manifestação artística em que o único recurso é a voz.

é o mesmo que cantar
num deserto sem sombra
em que a voz só dispõe
do que ela mesma ponha.

Depois de ler e reler o poema, de compartilhar do questionamento a respeito da relação do cante com o silêncio, tratado no segundo segmento, não resisti a pedir uma conversa com meu amigo e poeta Eucanaã Ferraz, cabralino essencial, que, durante uma hora, falou comigo, ao telefone, sobre a composição, iluminando cada verso com explicações de clareza solar. Não que fosse difícil entender um poema em que o presente do indicativo do verbo ser, essencialmente definidor, é repetido, sobretudo nos três primeiros segmentos. Ao passar ao quarto, o leitor já foi golpeado pela secura quase trágica do cante, expressa nos versos curtos, rascantes. A riqueza da minha conversa com o Eucanaã concentrou-se na exploração de sutilezas, na valorização de determinados elementos, em me fazer ver o significado de um fio de cobre, por exemplo, no quarto segmento, quando se percebe que bosque e pássaro são eliminados do cenário para que reste o mais forte: um fio de cobre, sem nada, apenas o fio, com sua capacidade lancinante que, aqui, é tudo:

A palo seco canta
o pássaro sem bosque,
por exemplo: pousado
sobre um fio de cobre.

a palo seco canta
ainda melhor esse fio
quando sem qualquer pássaro
dá o seu assovio.

A essa altura eu já devia ter deixado claro que não se pretende aqui fazer análise do poema, mas apenas seguir a sua trajetória a partir da carta de João Cabral a Decio de Almeida Prado. Eu não contava com a emoção de que seria tomada na conversa com o meu amigo e que me faz desviar um pouco do objetivo inicial. Quando iria eu pensar em me comover com a elegância de um prego? Sim, é só ler:

A palo seco existem
situações e objetos:
Graciliano Ramos,
desenho de arquiteto,

as paredes caiadas,
a elegância dos pregos,
a cidade de Córdoba,
o arame dos insetos.

e entende-se que o poeta busca o que há de mais livre de afetação, de enfeites. Bem ao contrário, ele procura imagens do que punge. Os recursos imagéticos de que se utiliza evocam o compasso desse canto flamenco; toda a economia de palavras expande a sua natureza emotiva, rítmica mas não melódica; todas as elisões nos versos remetem ao estilo contundente do cante a palo seco, origem, aliás, da dança que ganharia popularidade com o acréscimo do sapateado, das palmas, do violão, da guitarra e percussão.

Em Marselha, João Cabral recebeu convite de Alexandre O’Neill, da Guimarães Editores, de Lisboa, para publicar um livro. Seria o Quaderna, lançado primeiramente, então, na capital portuguesa em 1960, no qual ele incluiu “A palo seco”. Só no ano seguinte o livro seria publicado no Brasil, integrado a Terceira feira.

Para Eucanaã, o poema é uma espécie de autorretrato de João Cabral, que Otto Lara Resende considerou o mais franciscano dos poetas brasileiros. Um franciscano que não se privou de experimentar a volúpia dos antigos chamados Cafés Cantantes de Sevilha, a cidade pela qual se apaixonou a ponto de, no bairro de Triana, um dos mais populares, ser conhecido por todos como Don Juan, conta ele, com graça, na crônica “Sevilha”, publicada na seção “Eu Conheço um Lugar” do Jornal do Brasil de 27 de abril de 1988: “Se não fosse recifense me naturalizaria sevilhano”, conclui, e em 1990 homenagearia a cidade de seu coração com o livro de poemas Sevilha andando e, em 1992, com os Poemas sevilhanos.

Elvia Bezerra é pesquisadora de literatura brasileira e colaboradora no IMS.