Seguindo um roteiro de imagens de copas do mundo selecionadas nos arquivos dos Diários Associados mantidos pelo IMS, Cássio Loredano comenta momentos inesquecíveis de algumas figurinhas carimbadas que brilharam na competição.
1950
Foto de treino do Uruguai, no Canindé, em São Paulo, com camisas emprestadas pelo dono da casa. Publicada em O Jornal de 6 de junho e provavelmente feita em maio, quando se disputaram no Brasil três partidas pela Copa Rio Branco daquele ano. O Canindé era o campo do São Paulo Futebol Clube até a construção do Morumbi, quando foi transferido para a Portuguesa. Os “orientais” voltariam a São Paulo em julho, já na Copa, para jogar as duas primeiras partidas do quadrangular final, contra Espanha e Suécia, no Pacaembu. Empataram a primeira e ganharam a segunda com dificuldade, enquanto no Rio o Brasil surrava a Suécia por 7 a 1 e a Espanha por 6 a 1. Foi então um ‘já ganhou’ generalizado – que acabou como acabou: Barbosa batido, Bigode (6) não acreditando no que está vendo, e Ghiggia correndo para o abraço.
Na foto do treino, Obdulio Varela, o capitão charrua, é o 5º de pé, grandalhão, um pouco recuado, Ghiggia, o 6º, e Máspoli, o goleiro, o 8º.
(Os 7 a 1 de 2014 contra a Alemanha botaram aquele maracanazo no lugar que lhe é devido: éramos um timaço que perdeu com dignidade para outro timaço, que, ainda dois meses antes, nos tinha batido por 4 a 3 na primeira partida daquela Copa Rio Branco.)
1954
Gol da Hungria na final contra a Alemanha Ocidental, em Berna, Suíça. Se o primeiro ou o segundo, não se sabe, o verso da foto não informa. Com 10 minutos de jogo, a Hungria já tinha aberto 2 a 0, como em todas as partidas que jogou naquela Copa, inclusive contra o Brasil. Os alemães ocidentais, que viraram e foram campeões, dizem que tinham os olhos vidrados, espumavam pela boca e teriam todos caído de cama no dia seguinte.
Até onde isso é conversa de mau perdedor ou contém algo de verdade não é possível saber. Mas na segunda hipótese, não seria talvez descabido lembrar o anticomunismo empedernido, escancarado, da FIFA. Ainda mais ali, onde o Ocidente estava empenhado em reerguer a Alemanha Ocidental – e nela plantar um paraíso de bem-estar e consumo –, o último país do "mundo livre", limítrofe da "cortina de ferro" atrás da qual estava a Hungria.
1958
Na escadaria do Palácio do Catete, no Rio, então sede do governo federal, os campeões da Copa da Suécia, recebidos pelo presidente da República. Na fila de trás, Oreco, Dino, Pepe e Assis, roupeiro; na segunda, Joel, Zito, Paulo Amaral, preparador físico, Nilton Santos, Orlando e Hilton Gosling, médico; na próxima, Djalma Santos, encoberto, Castilho, Didi, Gilmar, Zagalo e alguém não identificado; e, na da frente, Moacir, Zózimo, Vavá, Jango, vice-presidente, Juscelino, Herbert Moses, presidente da Associação Brasileira de Imprensa e irremissível arroz-de-festa, Feola, técnico, alguém não identificado e Mário Américo, massagista. O da cadeira de rodas tampouco se sabe quem é.
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O memorável domingo, 15 de junho de 1958, Brasil x União Soviética, em Gotemburgo, Suécia, pela VI Copa do Mundo. Ouvindo os hinos, De Sordi, Vavá, Pelé, Zito, Didi, Garrincha, Zagalo, Nilton Santos, Orlando, Gilmar e Bellini; entre os soviéticos, o lendário Lev Yashin, o “Aranha negra”, com seu indefectível boné.
Foi o dia da reinvenção do football association, nada menos. A coisa já vinha lá de trás em embrião, na América do Sul, desde Friedenreich, Domingos, Leônidas, Zizinho e várias gerações de argentinos e uruguaios, estes bicampeões olímpicos e mundiais, em 1924, 1928, 1930 e 1950, respectivamente.
Naquela tarde, o Brasil apresentaria ao mundo contra os soviéticos, campeões olímpicos de 1956, a concepção brasileira do jogo, lúdica, mas laboriosa e pacientemente trabalhada ao longo de décadas, e ali completamente amadurecida. Garrincha, particularmente – com aquela imprevisibilidade de movimentos creditada em parte à sua (mal)formação óssea, com sua explosão e aquela faculdade única de, como um raio, transformar velocidade zero em máxima e máxima em zero, tudo combinado a uma intuição genial para matar o(s) adversário(s) no tempo, pegando-o(s) no contrapé –, Garrincha, pois, procedeu à minuciosa desmontagem e desmoralização do sistema defensivo soviético pelo riso. (Alguém, ao vê-lo, com muita felicidade se lembrou do Carlitos de Chaplin.) O jornalista francês Gabriel Hannot considerou os três minutos iniciais daquele Brasil x União Soviética “os maiores da história do futebol”. E assim Ney Bianchi escreveu na Manchete esportiva do dia seguinte:
Monsieur Guigue, gendarme nas horas vagas, ordena o começo da partida. Didi [passa] rápido para a direita: 15 segundos. Garrincha escora a bola com o peito do pé: 20 segundos. Kuznetzov parte sobre ele. Garrincha faz que vai para a esquerda, não vai, sai pela direita. Kuznetzov cai e fica sendo o primeiro João da Copa do Mundo: 25 segundos. Garrincha dá outro drible em Kuznetzov: 27 segundos. Mais outro: 30 segundos. Outro. Todo o estádio levanta-se. Kuznetzov está sentado, espantado: 32 segundos. Garrincha parte para a linha de fundo. Kuznetzov arremete outra vez, agora ajudado por Voinov e Krijevski: 34 segundos. Garrincha faz assim com a bola. Puxa a bola para cá, para lá e sai de novo pela direita. Os três russos estão esparramados na grama, Voinov com o assento empinado para o céu. O estádio estoura de riso: 38 segundos. Garrincha chuta violentamente, cruzado, sem ângulo. A bola explode no poste esquerdo da baliza de Yashin e sai pela linha de fundo: 40 segundos. A plateia delira. Garrincha volta para o meio de campo, sempre desengonçado. Agora é aplaudido.
A torcida fica de pé outra vez. Garrincha avança com a bola. João Kuznetzov cai novamente. Didi pede a bola: 45 segundos. Chuta de curva com a parte de dentro do pé. A bola faz a volta ao lado de Igor Neto e cai nos pés de Pelé. Pelé dá a Vavá: 48 segundos. Vavá a Didi, a Garrincha, outra vez a Pelé, Pelé chuta, a bola bate no travessão e sobe: 55 segundos. O ritmo do time é alucinante. É a cadência de Garrincha. Yashin tem a camisa empapada de suor, como se já jogasse há várias horas. A avalanche continua. Segundo após segundo, Garrincha dizima os russos. A histeria domina o estádio. E a explosão vem com o gol de Vavá, exatamente aos três minutos.
Eis a foto do gol: Vavá, Yashin já batido e a bola a caminho da rede. Na outra, o “Aranha negra” observado por Zagalo.
Em 1958, o ano em que o mundo descobriu o Brasil, filme de José Carlos Asbeg, há o depoimento de um jogador soviético daquela tarde. Conta como de repente se ouve no vestiário um baque surdo, estranho. Volta-se todo mundo e era Kuznetzov que tinha se descalçado e jogado as chuteiras violentamente na parede: “Não jogo mais futebol! Isto que nós jogamos não é futebol, olha o que aqueles caras fazem com a bola!”
O jogo seguinte, já no mata-mata, foi um 1 a 0 bem enjoado contra o ferrolho do País de Gales com “dez lá atrás e um recuado”. Mazola – que entrou no lugar de Vavá, contundido ao fazer também ele o segundo gol contra os soviéticos – fizera um golaço, uma bicicleta perfeita (Asbeg mostra), que o juiz absurdamente anulou, apitando jogo perigoso. Mas aqui, ei-lo comemorando o gol de Pelé, com Garrincha ao fundo e o autor do gol encoberto. Pelé vai em seguida buscar a bola dentro do gol e não vai conseguir sair, soterrado quase um minuto pelo time inteiro aninhado sobre ele no fundo das redes. Primeiro gol seu em mundiais (ele marcará mais cinco só nessa Copa, um no Chile, um na Inglaterra e quatro no México) e o mais importante de sua carreira, dirá ele toda vez que lhe perguntarem.
Na final, o gol do empate, Vavá, aos 9 minutos (os suecos tinham aberto 1 a 0 com Liedholm aos 3 minutos). O segundo gol também foi muito parecido: centro de Garrincha, Pelé na espera e Vavá se adiantando para encaçapar. Era o início do épico 5 a 2 final.
Com a apresentação do cartão de visita de Garrincha também aos suecos, estes se desarvoraram. Três beques ficaram mais ou menos parafusados na direita do ataque brasileiro e – quem ficou solto? Simplesmente Didi e Pelé, que fez aquela pintura de terceiro gol. Corre lá, segura os dois morenos também! E quem fez o quarto? Ora, Zagalo, com a 7, eis o lance. O “formiguinha”, no dizer de Nelson Rodrigues, “trabalhava como um Telê” e nesse mesmo jogo, no primeiro tempo, salvara de cabeça lá atrás uma bola em cima da linha, com Gilmar já batido no lance.
1962
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Três fotos do mundial seguinte, no Chile, três figuras capitais para a sorte da Seleção no torneio. Na primeira, aparece Pelé no comecinho da segunda partida do Brasil, contra a Tchecoslováquia, ainda na fase de chaves. No comecinho porque já aos 25 minutos do primeiro tempo ele distenderia o costureiro da coxa esquerda ao mandar um balaço no poste do goleiro Schroiff. Estava assim encerrada a sua participação naquela Copa. (O jogo foi 0 a 0. Nosso grupo era o mais forte, a ponto de chegarem à final outra vez Brasil e Tchecoslováquia, então 3 a 1 nós, bicampeões.)
Na segunda foto, cercado por quatro adversários, aparece Amarildo, o reserva de Pelé, já no próximo jogo, contra a Espanha. Os caras tinham um ótimo time, nesse jogo prejudicadíssimo pelo juiz chileno Sergio Bustamante. Eles tinham feito 1 a 0 e dominavam à vontade a partida, quando Nilton Santos derrubou, ou não, um espanhol dentro da área, metade jura que não, metade acha que sim. O juiz deu. Mas só falta, fora da área, para onde Nilton dera um passinho malandro que Bustamante não quis ver. Paciência. Puskas, sim, o húngaro de 1954, aqui jogando pela Espanha, bateu e Adelardo, que já fizera o primeiro, acertou lá da esquerda uma bicicleta de manual, perfeita, no ângulo esquerdo de Gilmar. Bustamante anulou, alegando jogo perigoso, quando Djalma Santos, o mais próximo, estava a no mínimo dois metros do espanhol.
(Será quem sabe ‘teoria conspiratória’, mas o comentarista Geraldo Bretas repetia direto em São Paulo – porque via relação direta entre uma coisa e outra – que dona FIFA teria recebido [de Washington?] e transmitido aos juízes do mundial a recomendação de que não prejudicassem o Brasil, país em que se gestava o golpe que dois anos depois defenestraria o presidente João Goulart. A tal história do ópio, panem et circenses etc. Bustamante teria sido melhor entendedor que a encomenda.)
Resultado: o mesmo Amarildo, que jogava muito e ainda por cima tinha estrela, empatou e virou o jogo, e o Brasil passou.
A terceira foto mostra Garrincha na altura da marca de pênalti marcando de cabeça! contra a Inglaterra, quarto jogo, quartas-de-final, observado por Vavá e Amarildo (20). Subindo muito mais que o beque muito maior. Mas era isso. Desde Pau Grande. Ele estava pescando e vinha alguém chamar, avisar que o jogo-contra ia mal. Largava tudo, ia lá, jogando em todas as posições, acabava com o samba e voltava à pescaria. É bom lembrar que, depois de estrear em 1955, as três próximas partidas pela Seleção, em 1957, Mané jogou na ponta esquerda.
Em 1962, na ausência de Pelé, chamou a si a responsabilidade de ir com frequência lá para o meio. Fez gol de canhota, de folha-seca et cetera. Resolveu o assunto e voltou ao riacho.
1966
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Da melancólica eliminação do Brasil por Portugal ainda na primeira fase da Copa da Inglaterra são estes dois flagrantes no estádio do Everton, em Liverpool. Pelé subindo observado por Jairzinho – e, na radiofoto, Eusébio, o “Pantera negra”, subindo para marcar o segundo gol português. Ele mesmo fez ainda o terceiro, foi 3 a 1. Orlando está batido e Manga (12) tampouco vai poder fazer nada.
Tínhamos vencido a Bulgária na estréia, 2 a 0, e perdido a segunda para a Hungria, 3 a 1.
A organização daquela entressafra foi na verdade uma bagunça que convocou 44 jogadores, em que ainda estavam os veteranos bicampeões Altair, Dino, Djalma Santos, Bellini, Zito, Gilmar, Orlando e Garrincha, e já estavam os futuros campeões de 1970 Brito, Tostão, Carlos Alberto, Fontana, Jairzinho e Gerson. Jogando, o único que esteve na Suécia, no Chile, na Inglaterra e no México foi Pelé.
Os donos da casa foram os campeões e aí está o cracaço Bobby Moore, o capitão, recebendo a Jules Rimet da rainha Elizabeth.
1970
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Quatro anos depois, no México, Rivelino acaba de fazer o primeiro gol do Brasil na Copa, contra a Tchecoslováquia. Era o empate, eles tinham aberto o marcador com Petras. Na foto, estão dois camisas 5 e dois 10 em atitudes opostas, claro. Os nossos, comemorando, são Clodoaldo e Pelé. No segundo tempo, o próprio Pelé e Jairzinho duas vezes fechariam o placar, 4 a 1.
Contra o Peru, quarto jogo, já no mata-mata, a elegância do capitão Carlos Alberto. O treinador peruano era brasileiríssimo, nosso gigantesco Didi, que classificara os andinos para o mundial desclassificando a Argentina em plena Buenos Aires. Pois quiseram os fados que o Peru enfrentasse o Brasil pelas quartas-de-final e Didi tivesse uma de suas grandes amarguras na vida: estar do lado de lá na hora do hino.
Na foto de 18 de junho, no estádio Azteca, Itália e Alemanha Ocidental alinhadas para a segunda semifinal. A primeira o Brasil fizera na véspera contra o Uruguai, 3 a 1 nós. Pois bem, além de um dia a menos até a final de domingo, 21, a Itália, que ganhou, teve aqui contra os alemães uma partida dificílima, extremamente desgastante física e emocionalmente. Terminado o tempo normal 1 a 1, tiveram que jogar a prorrogação, 4 a 3 Itália, que saiu de alma lavada, o que lhe desarmou a concentração necessária para o jogo de dali a três dias.
No time alemão destacam-se na foto, além de Uwe Seeler, o capitão, os campeões de quatro anos depois em Munique, Sepp Maier, o goleiro, Franz Beckenbauer, 4º a partir da esquerda, e Berti Vogts, o último.
1974
Final de Munique, X Copa do Mundo, Alemanha Ocidental x Holanda. Mal começa a partida, pênalti contra os donos da casa, que Neeskens converte. Maier escolheu a direita para cair e a bola vai entrar no meio, sob as vistas de Gerd Müller, lá atrás à esquerda, Cruijff, no centro, e Vogts.
A Alemanha virou, 2 a 1, e Beckenbauer, capitão, e Maier recebem o novo troféu (a velha Jules Rimet tinha ficado em definitivo com o Brasil no México) das mãos do então presidente da Alemanha Ocidental, Walter Scheel, à esquerda, de gravata de bolinhas.
O Brasil chegou às semifinais, que perdeu para a Holanda. Na disputa pelo 3º lugar, contra a Polônia, Zagalo afinal escalou Ademir da Guia para seus únicos 45 minutos em mundiais. Tirou-o no intervalo, quando estava 0 a 0 e o Brasil melhor, para podermos perder, como perdemos, foi 1 a 0.
1994
Taffarel, Márcio Santos, Mauro Silva, Jorginho, Aldair e Branco; Mazinho, Dunga, Bebeto, Romário e Zinho. O Brasil formado para jogar com a Suécia a semifinal do mundial dos Estados Unidos, em Pasadena. O uniforme A da Suécia é também amarelo e calções azuis e, como para a final de Estocolmo em 1958, eles ganharam o sorteio e nós tivemos que jogar de azul. Romário, Brasil 1 a 0.
Na final, com a Itália, a turma do “gol é apenas um detalhe”, da qual Carlos Alberto Parreira é membro efetivo, realizou o sonho de sermos campeões mundiais de seleções com um 0 a 0. Ganhamos nos pênaltis, com o zen-budista Roberto Baggio mandando a última chance italiana para a arquibancada.
Cássio Loredano é caricaturista e consultor do IMS.
(Pesquisa: Andrea Wanderley; Ivan Soter: Enciclopédia da Seleção, edições Folha Seca, 2014)