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Outro capítulo do chapéu

02 de setembro de 2020
 Otto Lara Resende (à direita), Egberto Maffra (no meio) e Alexandre Georlette. Bruxelas, 1957. Foto de Caio Cavalcanti/ Acervo Otto Lara Resende/IMS

 

Uma foto pode deixar incertezas quanto ao que representa, mas há as que provocam dúvidas cruciais. Destas faz parte a que se encontra no arquivo de Otto Lara Resende, no Instituto Moreira Salles. Ainda que o escritor mineiro, diligente guardador de papéis, tenha anotado data e local no verso – 30 de dezembro de 1957, Embaixada do Brasil em Bruxelas –, o sentido da foto continuava obscuro. Tampouco a terceira informação, os nomes das três pessoas fotografadas, contribuiu para esclarecer a presença do próprio Otto, o primeiro à direita, Egberto Maffra, no meio, e Alexandre Georlette.

Não é difícil constatar que procedem a uma ação conjunta. No plano mais baixo, vê-se uma espécie de fumaça. Egberto Maffra segura o braço de Otto como se quisesse reter o amigo, forçá-lo a permanecer, enquanto Georlette, curvado, segura um papel e faz ar de quem está demonstrando algo. A disposição e postura do trio evidenciam a intenção documental: o grupo posou para a câmera. Mas o que fazem eles em torno de algo que não se vê e para onde todos olham e parecem se divertir?

Antes de seguir adiante, vale a pena abrir um parêntese e voltar ao artigo “Qual é a graça?”, de janeiro deste ano, em O Globo, em que a jornalista Dorrit Harazim comenta a leitura equivocada de uma foto tirada pelo alemão Thomas Hoepker no dia 11 de setembro de 2011, quando ele surpreendeu cinco jovens sentados à beira do rio que separa o Brooklyn de Manhattan. Do ponto de vista do fotógrafo, o grupo aproveitava o belo dia de sol daquele final de verão, indiferente à nuvem de fumaça que denunciava a destruição das torres gêmeas do World Trade Center e das mais de duas mil vidas que se foram nos escombros.

Cinco anos depois, quando foi dada voz a Walter Sipser, um dos cinco fotografados, ficou-se sabendo que os amigos estavam tomados de tamanha perplexidade com o que acontecia do outro lado do rio, que se mantinham paralisados, o que levara o fotógrafo a julgar indiferença. Esse é um exemplo de falácia narrativa, conceito criado por Nassim Nicholas Taleb para descrever “a tendência humana em construir narrativas que procuram dar significados lógicos a uma cadeia de fatos observados”, explica Dorrit Harazim. Os erros decorrentes dessas interpretações podem ser crassos.

Em relação à foto do arquivo de Otto Lara Resende, não havia, até pouco tempo, elementos que induzissem a uma hipótese. Tratava-se portanto, de mistério, e não exatamente de erro de interpretação. Ainda que, como se viu, Otto tenha registrado local, data e nomes, a interrogação permanecia. A cronologia de sua vida bem como muitas de suas cartas comprovam que entre abril de 1957 e agosto de 1959 ele ocupou o cargo de adido cultural na Embaixada do Brasil em Bruxelas, ou na Bruxa, como preferia se referir à capital da Bélgica. Tinha como colegas Egberto Maffra, secretário na Embaixada, e Alexandre Georlette, auxiliar na mesma Embaixada.

Nem assim o enigma se resolvia. Até que uma carta de Otto a Fernando Sabino, de 28 de dezembro de 1957, matou a charada. Nela, o remetente conta o divertidíssimo episódio do dia em que os colegas de trabalho promoveram uma queima de seu chapéu, por julgá-lo caipira, e o presentearam com um elegante chapéu gelô, arredondado, de copa saliente, aquele mesmo modelo com que Freud cobria sua cabeça de pai da psicanálise. Em carta a Hélio Pellegrino, Otto conta outra vez o episódio, acrescentando que o presente, coisa muito fina, era fabricado pela tradicionalíssima casa inglesa Lock & Co. Hatters, fundada em 1676. A brincadeira da destruição do chapéu, sacramentada com um auto de fé, infelizmente não conservado em seu arquivo, realizou-se na sala do embaixador, que naquele período era Hugo Gouthier.

Não se discute aqui a qualidade artística da foto, de autoria de outro colega, o ministro Caio Cavalcanti. O que importa é que, sem a carta, seria impossível decifrá-la. Sim, porque mesmo que o chapéu aparecesse na foto, qual seria a graça? A quem pertenceria e por que seria o alvo? Quem trabalha em arquivo ou pesquisa sabe o que um achado assim representa. Resta saber por que Otto relatou o episódio em carta de 28 de dezembro e datou a foto do dia 30 (data da revelação?). Por enquanto, vamos à epístola:

E passaram a bombardear o meu lindo chapéu, comprado em Paris, com o Mozart Valente. O chapéu, coitado, realmente tomou uns ares capiaus, virou chapéu de tio do Emílio Moura. Então o Gouthier preparou uma vaquinha e perdeu todo um dia para comprar um chapéu tipo gelô para mim. Preto, elegantíssimo, de abas viradas. Depois fizeram um auto de fé condenando o meu chapéu parisiense (dito nesse auto de "Matozinhos"), depois me botaram numa sala, solenemente, com todo o pessoal da embaixada servindo de inquisidores, sentados em alas em torno do réu. Leram-me o auto de fé, condenando meu chapéu à queima. Depois, com gasolina adrede preparada, queimaram-no, com risco de incendiar a embaixada. Era no gabinete do embaixador. Depois me botaram o novo chapéu na cabeça, retirando-o duma caixa que ali estava. E de tudo foi feito farto documentário fotográfico pelo ministro Caio Cavalcanti. Depois lhe remeterei uma das fotografias do acontecimento. Tenho comigo o auto de fé, que passaram redigindo toda a tarde, em confabulações que me fizeram suspeitar da brincadeira. E eu tenho um novo chapéu (troquei-o por um cinza, mas ainda assim não tenho coragem de usá-lo, de tão besta, e prefiro o meu chapéu de mineirão fumador de cigarro de palha). Agradecendo a oferta, com muito fair play, eu disse que é comum os homens de cabeça se descuidarem do chapéu e que é sempre certo que os que não têm cabeça sempre capricham no chapéu.

Já no século XIX dizia Machado de Assis, no antológico conto “Capítulo dos chapéus”, que “o chapéu é a integração do homem, um prolongamento da cabeça, um complemento decretado ab eterno; ninguém o pode trocar sem mutilação”. Quando Mariana, a personagem feminina do conto, mulher do bacharel Conrado Seabra, pede ao marido que dê um fim ao chapéu baixo usado por ele diariamente, recebe uma explicação no mínimo inquietante: “A escolha do chapéu não é uma ação indiferente, como você pode supor; é regida por um princípio metafísico. [...] A verdade é que obedece a um determinismo obscuro”.

A ação do conto machadiano, incluído em Histórias sem data, de 1884, se desenvolve num dia de abril de 1879. Revoltada com a teórica e fria resposta do companheiro, Mariana, sentindo que “um certo demônio soprava nela as fúrias da vingança”, sai com sua amiga, Sofia, e se deixa levar a uma tarde de aventura pelo centro do Rio. Aventura eletrizante, mas em que não há uma ação decisiva: tudo se realiza no plano interno da personagem principal, na cadeia de sobressaltos, nos deslumbramentos quase aterradores que ela experimenta diante dos homens de chapéus altos, adequados às suas profissões. É criada toda uma atmosfera de riscos. Ao fim da tarde, inviolada, ela retorna à ordem e à segura monotonia de sua casa, onde, pouco depois de chegar, e para desapontamento seu, que passara a amar o "torpíssimo chapéu" do marido, recebe-o de chapéu novo. E lhe pede que o troque pelo velho.

Não estranha que Otto quisesse conservar seu chapéu capiau. A vaidade não era seu forte, e costumava deixar à mulher, Helena Lara Resende, a escolha de suas roupas. Acessórios mereciam ainda menor importância. Deixava aos amigos o atrevimento de substituí-los por mais modernos. Como bom machadiano, devia compartilhar do sentimento de mutilação defendido por Conrado Seabra com relação à troca de chapéu. Assim como o advogado do conto, não via razão para a mudança.

Fotos de Otto posteriores à cerimônia da queima mostram que ele se adaptou muito bem ao novo e elegante gelô.

Texto, com alterações, publicado originalmente na serrote 17 ½, edição especial para a Flip 2014.

Rosto de Elvia Bezerra, coordenadora de Literatura do IMS, visto de perfil

Elvia Bezerra é pesquisadora de literatura brasileira e colaboradora no IMS.