Ao chegar ao Brasil há quase dois séculos, em novembro de 1817, como um dos integrantes da Missão Austríaca que acompanhava a imperatriz Leopoldina – casada por procuração com D. Pedro I desde maio daquele ano –, o alemão Carl Friedrich Philipp von Martius era um jovem botânico começando a vida. Contudo, aos 23 anos, já era também reconhecido em seu meio como uma mente brilhante, dono de uma formação vasta que estimulava nele uma curiosidade natural por vários campos do saber. Ao voltar para seu país, apenas três anos depois, ele levou uma profunda ligação com o Brasil, que marcou e norteou seu trabalho até sua morte, em 1868. E deixou como legado o que ainda hoje é considerado o maior levantamento da flora nacional, que tem uma pequena mas representativa parte reunida na mostra O mapa de Von Martius ou Como escrever a história natural do Brasil, com aproximadamente 50 imagens, entre litografias e dois mapas. A exposição, apresentada no IMS Rio em 2017, ocupa o IMS Poços até dia 31 de março de 2019.
O título da mostra, que tem curadoria de Julia Kovensky, coordenadora de iconografia do IMS, e Iris Kantor, historiadora e professora da Universidade de São Paulo (USP), é inspirado no nome do concurso promovido pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) em 1843, chamado “Como se deve escrever a história do Brasil”. Já distante do país, mas sempre ligado a ele, Von Martius apresentou o resultado das observações feitas durante a expedição científica realizada anos antes quando, ao lado do zoólogo alemão Johann Baptist von Spix, também integrante da Missão Austríaca, percorreu 10 mil quilômetros de terras brasileiras coletando milhares de espécies de plantas e registrando seus ecossistemas.
Como as curadoras explicam no texto de apresentação, naquele momento o Brasil vivia um período de revoltas civis que pipocavam por todo o território, na esteira do surgimento do Estado imperial poucos anos antes, e necessitava de um arcabouço intelectual e geográfico que pudesse unir minimamente a nação esfacelada. O concurso do IHGB se dá nessa expectativa de unidade e Von Martius o vence com sua monografia de visão cientificista, mas extremamente ligada à História, dando cores e contornos bem específicos ao país.
“Von Martius tinha uma preocupação com a sistematização da história e do território brasileiro. Este trabalho é importante porque é a primeira vez, por exemplo, que alguém formaliza a ideia de que para compreender o Brasil é necessário entender a história das três raças que compõem o povo brasileiro. Isso deu base a muitas das teorias que vieram depois”, conta Julia. “Então aquele trabalho é algo bem formador, bem das origens do país como o conhecemos”.
Diante de uma produção tão ampla, tão abrangente, as curadoras decidiram fazer um recorte sobre a flora brasileira. No acervo do IMS existem aproximadamente 200 obras do naturalista alemão, muitas pertencentes à coleção Martha e Erico Stickel (que chegou ao instituto em 2008), e a maior parte do que está sendo apresentado ao público vem do primeiro dos 40 volumes da Flora Brasiliensis, conjunto que registra o minucioso levantamento feito por Von Martius e Spix na época da Missão Austríaca, publicados na Alemanha entre 1840 e 1906. Neste primeiro volume estão as litografias que mostram as paisagens e os ambientes em que as plantas se desenvolvem, além do mapa no qual o botânico identificou cinco ecossistemas próprios no país (os outros 39 trazem as litografias detalhadas de cada planta). O mapa em exposição no IMS é um fac-símile pertencente ao arquivo digital da Biblioteca Nacional.
“A partir da observação das espécies das plantas, Von Martius faz essa divisão em cinco biomas distintos, que são a caatinga, o cerrado, a Mata Atlântica, a Selva Amazônica e os pampas. Os biomas aparecem no mapa e essa acaba sendo uma primeira proposta de regionalização do país”, lembra Julia. “É um trabalho monumental elaborado ao longo de toda a vida, e que continuou a ser publicado após a morte dele. Mesmo de Munique, onde foi diretor do Jardim Botânico, ele permaneceu atento ao que acontecia no Brasil, se correspondia com pessoas aqui”.
O outro mapa a compor a exposição faz parte da obra Reise in Brasilien (Viagem pelo Brasil), publicada por Spix e Von Martius em 1823, pouco depois da volta de ambos a Munique. Nela, os dois descrevem a experiência de três anos em solo brasileiro, e a publicação acaba sendo também um retrato da imensa curiosidade de Von Martius por assuntos que iam além da botânica. De medições de temperatura e salinidade das águas do mar a observações etnográficas sobre populações indígenas, por exemplo. “É um trabalho que abrange mais temas que a Flora Brasiliensis. Ali, além da fauna e flora brasileiras, ele e Spix exploraram questões antropológicas e de costumes da população. É o relato da viagem. Além dessas publicações, Von Martius realizou outras obras sobre o Brasil. Faz o primeiro mapa localizando as tribos indígenas e um grande estudo só sobre as palmeiras brasileiras”, relata Julia.
A curadora reitera que Von Martius era um cientista com formação ampla, que seguia o pensamento do alemão Alexander von Humboldt (1769-1859), o grande naturalista do final do século XVIII, início do XIX, que constrói a ideia de natureza que se mantém praticamente a mesma até hoje: a da Terra “como um organismo vivo e interconectado”. Um pensamento que influenciou muitos outros, como Darwin. “Von Martius também se insere nessa tradição. Quando ele chega ao Brasil se encanta com o país, onde se interessou também pela música, registrou partituras, sons brasileiros. Ele valorizava esse pensamento romântico da época, que acreditava no uso de todos os sentidos, literalmente, para compreender o mundo. Homens como Humboldt e Von Martius se jogavam de verdade, saíam do frio, do conforto da Europa para se embrenharem numa selva, enfrentar doenças, calor”.
Além do mapa que marca o percurso que Von Martius e Spix percorreram no país, identificando vilas, fazendas, rios, cachoeiras e outros sítios considerados importantes, outras sete litografias de Viagem pelo Brasil também estarão expostas. Todas são registros da flora brasileira, assunto principal da mostra do IMS, primeira das instituições a comemorar, em 2017, os 200 anos da Missão Austríaca, que trouxe ao país não apenas naturalistas como também representantes de outras áreas, incluindo as belas artes. O nome de um destes artistas, Thomas Ender, aparece em muitas das litografias de Von Martius que, apesar de desenhar, também usava como base para seus trabalhos os registros feitos por diversos colaboradores.
Julia explica que as expedições envolviam muita gente, e era natural, portanto, que estudos científicos contassem com colaborações de outros membros do grupo, de outros naturalistas, ou mesmo de artistas que passaram pelo país em outras épocas e mandavam seus desenhos. “A ilustração científica era feita muitas vezes por esses naturalistas com formação artística também, mas havia os artistas. Thomas Ender era um grande desenhista e aquarelista, e veio para fazer o registro visual da Missão Austríaca. Von Martius usou muitos de seus desenhos como base para as litografias”. A curadora lembra que é preciso entender o período e as características desse tipo de trabalho como uma produção coletiva. Se ao receber um desenho o botânico percebesse que faltava uma espécie a ser mostrada, ele a incluía na litografia. “As ilustrações tinham uma função de comunicação científica”.
Como grande editor de uma obra igualmente grandiosa como a Flora Brasiliensis, Von Martius foi recebendo, ao longo dos anos, muitas outras colaborações, como as do diplomata belga Benjamin Mary, que em torno de 1836 fez belos registros de paisagens no Rio de Janeiro. Novamente revelando sua curiosidade e conexão com o Brasil, uma das derradeiras gravuras feitas para a Flora por Von Martius, já no fim de sua vida, foi criada a partir de uma foto do suíço Georges Leuzinger (1813-1892), e revela a floresta e o contorno da Serra dos Órgãos, no estado do Rio. Não por acaso, é a prancha que encerra a exposição.
Para Julia Kovensky, a mostra não resume a grandeza, mas ajuda a evidenciar um lado muito importante do homem considerado o patrono da botânica brasileira, cuja obra, marcada pela paixão e pelo entusiasmo dedicados ao país, ainda segue interessando a diversos campos de conhecimento.