A série Primeira Vista traz textos de ficção inéditos, elaborados a partir de fotografias selecionadas no acervo do Instituto Moreira Salles. O autor escreve sem ter informação nenhuma sobre a imagem, contando apenas com o estímulo visual. Em abril de 2019, a filósofa e escritora Carla Rodrigues escreveu o conto “Pernas”, baseado numa fotografia de Chico Albuquerque (1917-2000), pioneiro da publicidade brasileira na década de 1940. Desde 2006 o IMS preserva, por meio de convênio com o Museu da Imagem e do Som de São Paulo, um arquivo com aproximadamente 70 mil imagens do fotógrafo.
Sentada na beirada da cama, prestes a tirar a roupa, deu uma olhada no grande espelho fumé. Passavam pela sua cabeça, como um filme, todas as repreensões que já tinha ouvido sobre o jeito certo de cruzar as pernas. “Isso não é jeito de uma garota sentar”, “senta direito, menina”, “se não sabe sentar não pode usar vestido”, “cruza as pernas para não aparecer a calcinha”. Cresceu tendo que aprender a cruzar as pernas como fazem as princesas e, descobriria depois, como só podem fazer as mulheres magras, as atrizes de cinema, e as secretárias executivas.
Havia sido estranho entrar num motel dentro de um táxi. Nenhum dos dois tinha carro. Aquele lugar barato e feio era perto o suficiente para isso. Descer do táxi, pegar a chave na portaria, subir o elevador. Um lance só, iriam de escada? Até para essa pequena decisão hesitaram. Não estavam à vontade. Nem um com o outro, nem com aquele motel horrível, nem com a falta de intimidade da situação.
Sim, vamos subir de escada. Era a proposta dele diante da porta do elevador que parecia não chegar nunca. Ela aceitou – quanto mais rápido se livrassem daquele corredor à meia-luz, melhor. Chave na porta. Um quarto minúsculo e feio. Sentia-se estranha, como se houvesse um constrangimento infantil que nunca a deixasse ser espontânea ao lado dele. Queria agradá-lo, mas ao mesmo tempo exercitava uma certa provocação, quase uma competição. Alternava docilidade e timidez com uma agressividade que não sabia de onde vinha.
– Você quer ligar o ar-condicionado?
Era a segunda vez que ele fazia aquela pergunta. Ela não havia escutado, imersa em memórias e medos, se olhando no espelho.
– Não, por mim não precisa. Detesto ar-condicionado.
O que conversar num quarto de motel? Observar, por exemplo, como são feias as toalhas, os lençóis? O quarto é pequeno, o banheiro também será? Para que serve essa portinhola? Vamos ligar a música? Tudo parecia meio ridículo de ser dito. Ela achava que pararia de respirar a qualquer momento, como uma asmática em crise aguda. Por um instante temeu que a asma estivesse mesmo prestes a se manifestar. A combinação entre ansiedade e o cheiro de mofo poderia ser cruel. Era preciso simular naturalidade, como as mulheres fazem quando cruzam as pernas do jeito certo.
Ele estava deitado na cama. Tentavam descontrair, mas ambos sabiam que a carga de expectativas dentro daquele quarto era muito alta. Conversaram muito, para só depois começarem a se beijar. E beijaram-se como faziam aos 15 anos, quando ainda tinham a convicção de que um era o grande amor da vida do outro. Uma destas certezas de juventude que os adultos atribuem à imaturidade. Ao longo dos anos, viveriam assombrados pela ideia de que, apesar de separados, nunca havia deixado de existir um amor profundo e não realizado entre os dois.
Luz apagada, os corpos começam a se tocar. Pela primeira vez algo parecia espontâneo. Ele está dentro dela, ela se mexe sob ele, ele arfa, os dois gemem, ela tenta olhar para o rosto dele. O movimento do sexo domina a cena, ninguém mais pensa em nada, são só dois corpos sincopados, um dentro do outro, buscando por um prazer que é físico. Por alguns instantes, esquecem todas aquelas expectativas de amor. É só sexo desfibrilando os corpos.
Desde que uma amiga percebeu que ele a olhava insistentemente na escola, diante dele se sentia meio burra, mais atabalhoada. Décadas depois, estava ali, nua, nem sabia por que ainda lembrava do que acontecia no recreio. Formavam um círculo de garotas cuja diversão era jogar umas pedras para o alto e recolher conforme estavam caindo. Ela sentava no chão com as amigas, pernas cruzadas como um buda, fazia malabarismos para que a saia cobrisse a calcinha, agora perdida em algum lugar do quarto.
Ainda ressoava de modo vívido a primeira vez que escutou a repreensão: “senta direito, menina não senta de perna aberta”. Havia algo de específico no que se espera das mulheres quando cruzam as pernas? Não entendia direito as regras, só fazia o possível para obedecer. Vez por outra, uniforme e joelhos sujos “como um menino”, alguém a ameaçava com um curso de etiqueta. Uma escola em que ensinavam as mulheres a andar e cruzar as pernas. Naquela tarde de calor, naquele quarto de motel de beira de rua, enfim descobriu o desejo tanto tempo abafado de abrir as pernas.
Carla Rodrigues é filósofa, feminista e escritora. É autora de ensaios, traduções e livros de não-ficção, como Duas palavras para o feminino (NAU, 2013). É professora de Filosofia (UFRJ), pesquisadora (PPGF/IFCS) e bolsista da Faperj.