Não constitui novidade afirmar que a poética bandeiriana é povoada de personagens da vida de Manuel Bandeira. Além dos poemas claramente dedicados a amigos, publicados em Mafuá do malungo, o poeta celebrizou personagens como "Irene preta/ Irene boa”, sua empregada na década de 1920; o compositor Jayme Ovalle; Moussy, a mulher que amou; para não falar nos nomes de pessoas importantes de sua infância, presentes no antológico "Evocação do Recife".
Suponho que intrigue o leitor o poema "Versos para Joaquim", de Estrela da tarde, que se inicia: "Joaquim, a vontade do Senhor é às vezes difícil de aceitar". Escrita em nove versos, a composição deixa entrever um momento de ternura, durante o qual, na missa de sétimo dia da mulher, o viúvo ajeita o laço de fita no cabelo da filha mais nova.
Joaquim, a vontade do Senhor é às vezes difícil de aceitar.
Tanto Simeão desejo de ouvir o celeste chamado!
Por que então chamar a que estava apenas a meio de sua tarefa?
A indispensável?
A insubstituível?
(Por isso sorri com lágrimas quando te vi, antes da missa,
[ajeitar o laço de fita nos cabelos de tua caçulinha.)
Ah, bem sei, Joaquim, que o teu coração é tão grande quanto o da mãe melhor.
Mas que tristeza! Ela foi demais, estou de mal com Deus.
– Joaquim, a vontade do Senhor é às vezes inaceitável.
Entre o terceiro e sexto versos, compreende-se que houve uma perda, que a perda interrompeu um processo em curso, e que o poeta compartilha da dor de Joaquim. Mas o que arrebenta a alma do leitor é, pela força poética, visualizar a ternura do pai ao assumir, de primeira hora, o desvelo materno de "ajeitar o laço de fita nos cabelos" da "caçulinha". Não se trata de proteger a criança de um tropeção, de aquietá-la perto de si, de impedir-lhe uma saída precipitada, ou mesmo de consolá-la, gestos comuns aos homens. Mas de uma delicadeza estética, de um detalhe especialmente caro aos olhos femininos: a simples arrumação de um laço de fita.
A emoção poética aí contida é completa, e talvez dispensasse a curiosidade de saber quem é Joaquim. Mas, leitora da crônica bandeiriana que também sou, em "Um sábio", incluída em Andorinha, andorinha, deparei com a informação de que a personagem do poema é o engenheiro e físico brasileiro Joaquim da Costa Ribeiro, descobridor do efeito termodielétrico, conhecido no meio científico internacional como Efeito Costa Ribeiro. Pai de nove filhos, perdera a mulher durante o décimo parto – informa o cronista –, acrescentando que ficou com "os olhos úmidos" ao ver a iniciativa do pai, na sacristia da igreja da Candelária, e que, ali mesmo, fez o verso que encerra o poema: "Joaquim, a vontade do Senhor é às vezes inaceitável".
Veja-se que, embora semelhantes, há uma radicalização entre o verso de abertura e o de encerramento. No primeiro, a vontade do Senhor é “às vezes, difícil de aceitar”. Difícil, mas possível – é o que se entende. No fim, porém, expostas as razões do sofrimento, a vontade do Senhor é “às vezes inaceitável”. O que era difícil passa a ser impossível, ainda que, em ambos os casos, “às vezes”.
"Verdadeiramente, naquele momento eu não podia acreditar em Deus" –, segue o Bandeira cronista, reafirmando o conteúdo dos "Versos para Joaquim". Sua emoção – segue ele a contar – "subia de ponto" ao ver o cientista se ajoelhar com os nove filhos junto ao altar-mor para receber a comunhão.
Nomeado por Bandeira “um ser de eleição”, Joaquim convivia com o poeta de Pasárgada na Faculdade Nacional de Filosofia, onde se encontravam, no elevador ou nos corredores, e falavam de poesia. Bandeira, ali professor de literatura hispano-americana, sabia que o físico escrevia versos, Alceu Amoroso Lima já lhe dissera até mesmo que havia lançamento previsto pela Editora Agir – divulga o cronista de "Um sábio".
Tudo isso, portanto, eu já sabia quando recebemos, no IMS, um livrinho intitulado Poemas do amor e da morte, de Joaquim da Costa Ribeiro, lançado, por iniciativa da novena de filhos do autor, em 1998, pela Aeroplano – portanto, 38 anos depois de Bandeira tê-lo anunciado. Chegou-nos como presente de final de estágio de Laura Alvarenga da Costa Ribeiro, dizendo-nos que se tratava de versos de seu avô. Claro está que, com o exemplar nas mãos, identifiquei imediatamente o autor, o Joaquim do poema e da crônica de Bandeira. A partir daí, eu começaria a estabelecer a correlação entre os dois poetas, a crônica e Laura Costa Ribeiro.
Li os Poemas do amor e da morte no mesmo dia, ao chegar em casa, imaginando que Manuel Bandeira teria gostado de conhecê-los. São todos inspirados em “A indispensável/ A insubstituível” dos versos bandeirianos. Ela era Jacqueline de Leers, nascida na França em 1911 e transplantada para o Brasil, com a família, ao final da Primeira Guerra.
Jacqueline seria a “Virgem suave, que ainda não conheço,/ Mas que um dia será a minha companheira,/ Na dor e no prazer” do primeiro dos Poemas do amor. A partir de 1934, quando se casou com Joaquim, ela passou a assinar Jacqueline de Leers Costa Ribeiro, e foi para ela que o cientista-poeta, por profissão mais atento ao universo do que nós, escreveu em “Cântico do amor feliz": “A beleza do meu universo/ É um reflexo da sua beleza”. Não é pouca coisa.
Jovem francesa, Jacqueline chegou a frequentar a Escola de Belas-Artes, no Rio, mas abandonou os estudos quando se casou. Conjugou a pintura com a atividade doméstica, mas precisou abandonar os pincéis quando os filhos começaram a chegar. À primeira, Ghislaine Myriam, nascida em 1935 e saudada com o poema paterno “Oremus”, seguiu-se Sérgio Christiano, um ano depois: “Protegei também esta criança, nós vos suplicamos”, implorava o pai em “Oremus II”. Pedido feito e atendido: Sérgio Christiano da Costa Ribeiro seria físico de projeção nacional, assim como Paulo Edmundo, pai de Laura, hoje professor na PUC-Rio, onde se dedica à física aplicada para artes e arqueologia. Luiz Alberto da Costa Ribeiro tomou outro caminho – foi economista. Infelizmente, nos deixou no último agosto. E Carlos Antonio, engenheiro.
Em meio a irmãos “muito estudiosos e cheios de medalhas”, tudo o que não queria a sétima dos nove filhos, a antropóloga Yvonne Maggie, era o destino da mãe, morta aos 45 anos – conta Yvonne no delicioso texto "História de um arquivo", no seu blog. Das funções exclusivamente maternas também escapou Jeanne Marie, psicanalista e autora, dentre outros, de A criança autista em trabalho. Certamente Bandeira teria gostado de saber que esse seria o destino da "caçulinha" do poema, naquele dia perto das irmãs, Ghislaine, Annah Maria, Martha Maria, futuras professoras.
“Bom como água fresca”, disse Tristão de Ataíde de Joaquim da Costa Ribeiro, cujos estudos das características radioativas dos minerais brasileiros é inquestionável contribuição à ciência. A família construída por ele e Jacqueline é notável, de reconhecimento comprovado em vários ramos da ciência, mas, desde que comecei a escrever este texto, meu pensamento é para Jacqueline de Leers Costa Ribeiro, morta “no instante mesmo em que dela deveria surgir/ a misteriosa aurora de uma nova vida”, escreveu o marido. E penso nela porque os versos do poeta são de uma sinceridade tão pungente – aquela sinceridade do instante da poesia – que me levaram a crer em uma milagrosa história de amor, interrompida justamente depois de Jacqueline lutar, imagina-se com que vigor, pela criação de mais uma vida.
As leves mãos cruzadas sobre o peito,
O olhar sem luz, a fronte úmida e fria,
Vejo-te, o rosto imóvel e desfeito
Após a longa noite de agonia.
É pelos versos de Joaquim da Costa Ribeiro que o leitor constrói o perfil de mulher doce e firme, corajosamente amorosa. Terá ela apreendido o parto, aos 45 anos de idade, quando a “caçulinha” não passava dos sete e ainda usava laço de fita nos cabelos? O exercício doméstico, cumprido com paixão – ainda sugerem os versos –, não lhe roubou a sensualidade, elegantemente sugerida na farta trança que lhe faz uma espécie de tiara na cabeça.
É no mínimo curioso que a bem cuidada edição dos Poemas do amor e da morte traga uma boa fortuna crítica, mas em nenhum dos textos, de autoria de grandes nomes da literatura e da ciência, inclusive o de Bandeira, em nenhum deles se encontra o nome completo daquela que é sempre traduzida por meio dos melhores adjetivos. Mas anônima. Não esqueçamos: trata-se de Jacqueline de Leers Costa Ribeiro.
No Correio da Manhã de 13 de janeiro de 1957, lê-se o convite para a missa de sétimo dia de Jacqueline, a realizar-se na quarta-feira, dia 16, às 9h30, na Candelária. Foi a essa missa que Manuel Bandeira esteve presente para depois escrever: “Estou de mal com Deus”.
Dois anos depois, em Viena, durante uma das viagens de estudo, Joaquim da Costa Ribeiro compunha, em francês, o poema “Plainte”, ainda tomado da perplexidade em que a morte inesperada o deixara. Lembra a mulher como "a mais terna, a mais amorosa, a mais sensual e a mais pura"
La plus tendre, la plus amoureuse, la plus sensuelle, et la plus pure
o que não deixa de surpreender, porque a sensualidade feminina raramente era realçada por maridos, sempre prontos a louvar as virtudes e purezas de suas mulheres.
Com saudade incontida, o poeta pergunta por que Deus levou sua mulher, e com especial delicadeza se refere ao filho morto, em tradução livre, como “essa pequena flor de carne, esse pequeno broto vermelho que sequer pôde se abrir”:
Pouquoi me l’avoir enlevée, dechirant des racines si profondes,
Après qu’elle m’avait donné neuf enfants, dans la nuit feconde?
Après qu’elle m’avait donné encore cette petite fleur de chair,
Ce petit bourgeon tout rouge qui n’a même pas pu être ouvert
Nascido em 1906, em 29 de julho de 1960 morria Joaquim da Costa Ribeiro, durante um jantar de confraternização de cientistas estudiosos de física nuclear na América Latina, reunidos no Rio de Janeiro. Poucos dias depois, em 8 de agosto, Bandeira o homenageava com a crônica “Um sábio”. Ficava assim consagrado o cientista brasileiro em verso e prosa. E, para nós, agora na neta Laura Alvarenga Costa Ribeiro, que aqui chegou.
Eu a havia contratado no início de 2018 para trabalhar no Portal da Crônica Brasileira. Aluna do curso de Letras da PUC, Laura candidatou-se ao estágio no IMS e, durante a entrevista, impressionou-me vivamente. Não só pela desenvoltura, a firmeza e a inteligência, mas principalmente pelo espírito apaixonado, pela curiosidade, não só intelectual, como em relação à vida. Gosta de escrever – escreve contos –, já derrubou muitos oponentes no jiu-jitsu,e tem talento para viajar. Aos 25 anos, soma experiências em um lago de sal no Egito, no Museu do Perfume, em Paris, e acaba de fazer uma temporada como Rafting Guide nos Estados Unidos, onde ficou 21 dias pelas correntezas do Grand Canyon. Isso sem esquecer a literatura. Quando, na entrevista, ela me contou sobre o treinamento que fez para o Museu do Perfume, eu me decidi pela contratação. Lembrei da crônica "Os perfumes da terra", de Clarice Lispector, que ensina: "Eu me perfumo para intensificar o que sou", por isso, continua a escritora, jamais se permitia usar perfume que a contrariasse. "Perfumar-se é uma sabedoria instintiva. E como toda arte, exige algum conhecimento de si própria".
Não me enganei ao considerar que o assunto de que trata Clarice é sério. Reconhecer o perfume que traduz a personalidade e combina com o cheiro natural exige atenção, sensibilidade, perspicácia, e foi isso que Laura Ribeiro provou ter ao longo de seu trabalho no IMS, desenvolvido em parceria com a Casa de Rui Barbosa, onde ela cuidou de Rubem Braga com espírito investigativo e alegre competência. Muito deve o Portal a essa neta de Joaquim da Costa Ribeiro.
Obrigada, Laura, pelos Poemas do amor e da morte. Cá com meus botões, penso: o poema de Bandeira tem nove versos. Por acaso? Desconfio que não. Terá ele destinado um verso a cada um dos nove filhos de Joaquim da Costa Ribeiro? O poeta era muito capaz dessas sutilezas.
Elvia Bezerra é coordenadora de Literatura do Instituto Moreira Salles