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Simpatia para Santa Clara

23 de fevereiro de 2021

A série Primeira Vista traz textos de ficção inéditos, elaborados a partir de fotografias selecionadas no acervo do Instituto Moreira Salles. O autor escreve sem ter informação nenhuma sobre a imagem, contando apenas com o estímulo visual. Nesta edição, a escritora Natércia Pontes se inspirou em uma imagem da série Zoo do fotógrafo João Castilho, que integra o acervo de Fotografia Contemporânea do IMS.

João Castilho. Jabuti, da série Zoo. (Acervo IMS)

Começa com um trovão e depois a mulher encostando a escada meio bamba na parede externa da casa. Debaixo dos pingos gordos, a mulher sobe até o telhado e descarta um ovo na ondulação da telha. Se o ovo rolar, a calha servirá de bloqueio, a simpatia já estará feita. A chuva cessou, a mulher pôde dormir sem que suas paredes gotejassem e a água dentro da casa atingisse as tomadas causando um curto-circuito e depois um incêndio, ameaçando a integridade de sua família. O homem dormia, a barriga oscilando, a menina dormia encolhida, agarrada a um pano. A calha falhou no meio da noite e no outro dia a menina encontrou o ovo depositado sobre um monte de areia no quintal. Ela cuidou do ovo como se fosse uma boneca, fazendo-lhe carinho, aquecendo a bolinha encardida no colo. Um dia o ovo eclodiu e de lá saiu um jabuti minúsculo. Surpresa, ela colheu o recém-nascido escorregadio, leve como um inseto. Foi depois de observar seu rosto de velho que ela criou medo. Largou o réptil no quintal. A mulher perguntava, mas por que você tem medo, menina? Ela respondia que o jabuti era de verdade. Ele é de verdade. O tempo desliza, um dia as crianças imitam macacos com um jeitinho rudimentar, no outro elas são os próprios macacos, caras e bocas propositais, macacos adultos. O tempo desliza. A mulher e o homem estão mortos, as covas ladeadas, dois montinhos de areia. Agora a menina é a mulher, o jabuti é imenso e seu casco lembra um azulejo antigo. Um trovão estoura longe. Os dois estão sozinhos em casa, deitados na cama de casal. A mulher acaricia o jabuti, desenhando redemoinhos em sua carapaça. Ele fecha os olhos. As gotas da chuva já pingam forte no telhado, provocando um estardalhaço acústico. O réptil abre os olhos, esboça um bocejo banguela, vibra a cauda. Seu pênis escapa do fundo, um tubo oblongo, a glande laureada de pétalas nobres, como de uma orquídea. Surpresa, ela ouve o homem chegar. Ensopado, ele bate os sapatos no capacho. Mulher, estou pingando, me traz um pano, uma toalha. Rápido.

Natércia Pontes nasceu em 1980, em Fortaleza, e mora em São Paulo. É autora de Os tais caquinhos (2021), Copacabana Dreams (2012), finalista do prêmio Jabuti, e Az mulerez (2004). (Foto: Renato Parada)