Em crônica inédita em livro até 2015, quando só então o IMS a publicou na coletânea De um caderno cinzento, Paulo Mendes Campos revela que, quando era adolescente e decidiu ser escritor, comprou três cadernos e passou a preenchê-los com trechos de poesia e prosa, de acordo com o tema: em um, fez transcrições sobre a morte, em outro, sobre a passagem do tempo e, no terceiro, sobre a solidão. “Tempo, solidão, morte. No way out.” – resume ele no texto 22 de De um caderno.
Paulo não só lia como estudava e anotava – provam os cadernos. Anotava muito e, às vezes, com método, como fez com a seleção temática a que acabo de me referir. Não foram somente esses três cadernos que o cronista e poeta mineiro, nascido em 1922, cuidou de preencher. Ao longo da vida, findada em 1991, ele guardou mais 58 outros, o que soma um total de 61. De naturezas completamente diferentes, contêm listas de palavras, listas de personagens da literatura mundial, listas as mais diversas; relação de ideias, de critérios de organização para publicação de sua obra, além de estudos desordenados e anotações vagas, próprios a um item de caráter fragmentário como o caderno.
Não deixa de causar espanto o conhecimento da literatura universal que Paulo Mendes Campos detinha, mal saído da infância. Afinado com o gosto de sua geração, as leituras se concentravam nos autores franceses, de onde vem boa parte das citações, mas há também uma boa amostragem de poetas e prosadores ingleses e espanhóis, alguns de outras nacionalidades, sem esquecer brasileiros, inclusive contemporâneos seus.
A solidão que atraía o adolescente na Belo Horizonte nos primeiros anos da década de 1940, e que o levou a destinar um caderno ao assunto, seria tema da vida inteira. Nem de longe as anotações no caderninho de capa bege, coalhada de pequenas abelhas marrons, registrado no IMS sob o número 039088 e disponível para consulta on-line, esgotariam o tema da solidão. E embora vamos conhecer aqui algumas das notas ali feitas, antecipo uma definição que ele registraria em crônica de 1971, às portas de se tornar cinquentão, revelando o quanto o tema não o abandonava: “Nada mais espetacular foi jamais escrito sobre a solidão, quando santa: ‘Que luxo estar sozinho!’. Só podia ser mulher: Virginia Woolf”.
A frase é reflexão de Orlando, personagem principal do romance de mesmo nome, depois que o poeta Nick Greene deixa sua casa. O anfitrião sabia que perdera o companheiro de conversas divertidas; tinha consciência de que, sem ele, não saberia misturar o ponche de maneira correta, mas, livre do som da voz do visitante, pensa: “Que luxo estar sozinho mais uma vez”.
Era com essa solidão, indissociável da paz, que Paulo Mendes Campos sonhava desde cedo. Não tão cedo quanto o inglês de doze anos de idade e futuro poeta britânico Alexander Pope na “Ode on solitude”, nos versos que expressam a tranquilidade do campo, rebanhos bem alimentados, “boa saúde e paz de espírito”. Este é também o sentimento de Romain Rolland, que reivindica “o sagrado direito que todo ser tem à solidão interior”, para a qual, como para o nosso cronista, o silêncio é indispensável.
O gosto de Paulo está explícito na crônica 22, em que ele se confessa “irritável pelos ouvidos”. Ressalta a dificuldade de conviver com os homens “porque o silêncio é difícil”, expõe seus hábitos cotidianos a favor do silêncio e termina citando o rei Lear no momento em que, carregando nos braços a filha Cordélia, morta, lembra que sua voz era suave, delicada e baixa, coisa excelente numa mulher – diz o rei, desolado, cujas palavras o cronista transcreve, no original:
Aprendi, sem deliberação, a pisar leve, a fechar portas com respeito. A primeira coisa que eu noto na mulher, depois da qualidade da expressão, é a tonalidade da voz. E amo o rei Lear quando fala da filha morta: “Her voice was ever soft,/ gentle, and low, an excellent thing in woman”.
Quem leu o magnífico ensaio de Paulo Mendes Campos sobre a novela – aliás ele diz não ser uma novela, e sim uma visão – Coração das trevas, de Joseph Conrad, publicado no livro Diário da Tarde, sente o vigor com que o cronista-ensaísta trata do tema da solidão nessa obra que, garante, conduz o leitor “ao negrume sinistro da existência humana”.
“A necessidade da solidão revela sempre a nossa espiritualidade, e serve para dar a sua medida” – palavras do filósofo dinamarquês Kierkegaard na pág. 14 do caderno. Ele fala em “necessidade”, e eu penso: a solidão compulsória destes tempos de Covid-19 revelará menos da nossa espiritualidade? O que acharia Paulo Mendes Campos desse estado por ele desejado, agora contaminado pela aura de perigo iminente, pelo alerta surdo e sombrio a toldar a paz intrínseca à boa solidão? Até onde é possível, sem indignação, fruir desse bem do espírito na hora em que nossa tragédia é dupla: a ameaça do vírus e o desvario do portador do título de chefe da nação, no papel de agravar o que já é sobejamente grave? Solidão e paz precisam ser indissociáveis para que o binômio resulte bom.
Dentre os contemplados no caderno de Paulo Mendes Campos, talvez seja o espanhol Ortega y Gasset quem mais se aproxime do tipo de solidão mundial imposta nesta primeira metade de 2020. Diz ele que, sendo ao homem impossível entender-se com seus semelhantes, “quando condenado à solidão se extenua em esforços para chegar ao mais próximo”. Justifica, desse modo, os laços que, no momento, se criam entre estranhos unidos pelo mesmo temor e pela mesma necessidade. A frase de Gasset é livre do travo de Bernanos, para quem “é penoso viver só; mais penoso ainda partilhar sua solidão com indiferentes ou ingratos”.
Mais reconfortante para o momento é ler as anotações, às vezes feitas na língua de origem, às vezes traduzidas, de frases de Jacques Maritain e Aldous Huxley. Para o primeiro, as almas de comunicam a despeito do abismo de solidão em que possam estar: “Abîme de solitude, soit! L’individu peut se definir ainsi./ Mais par l’esprit les âmes se communiquent”. E o segundo reforça a ideia ao afirmar que “o mais íntimo dos contatos é apenas um contato de superfícies”. A ideia dá o que pensar, mas não resolve o mistério da necessidade do contato.
Ainda não se conhece a arte que surgirá do confinamento atual, mas, com certeza, Hélio Pellegrino, que, com Paulo, Otto Lara Resende e Fernando Sabino integrou o lendário “quarteto dos mineiros”, mereceu a transcrição desta frase no caderno do amigo: “A solidão, se bem que trágica, é a verdadeira condição do artista”. Com sentido semelhante, há, na pág. 18, destaque para uma frase de Rainer Maria Rilke extraída de carta a Franz Xaver Kappus em 23 de dezembro de 1903 e incluída em Cartas a um jovem poeta: “Por isso, querido senhor, ame sua solidão, suporte a dor que lhe ocasione; e que o som de sua queixa seja belo.”
O curioso é que Paulo não se limitou à frase. Copiou a carta inteira. Como se, pelo ato de escrever, com sua letra ainda bem arredondada de jovem, precisasse gravar o conteúdo para si mesmo. Não é impossível que a tenha traduzido de alguma edição francesa – há lacunas entre palavras que sugerem a frustração da busca pelo termo exato.
“Que seria uma solidão que não fosse uma grande solidão? A solidão é “una” e, por natureza, grande, pesada e difícil de aguentar”, escreve Rilke no primeiro parágrafo dessa carta que leio em meu exemplar de Cartas a um jovem poeta, na tradução de Fernando Jorge. Procurei-a porque queria ver a data. Deparei com outra data, manuscrita, na página de rosto: 12 de junho de 1974, ao final de uma dedicatória escrita com letra que só o silêncio deste fim de tarde poderia evocar, com um clarão, uma história bela e triste, como são as grandes histórias, e me arrancar um sorriso de gratidão à vida. Estava certo Paulo Mendes Campos quando, no ensaio sobre o livro de Conrad, escreveu que “só a solidão total nos conduz às desconhecidas idades do homem”. Ou o solitário e grande filósofo suíço Amiel, citado na pág. 28, ao invocar o silêncio: “Tu deixa-nos ver em nós profundidades que dão vertigens”.
As anotações até mais da metade do caderno 039088 são maciçamente sobre solidão. Depois vão se diluindo em outros temas, como convém a um adolescente ávido de tudo, que se tornaria escritor de erudição profunda, mas filtrada com delicadeza em textos leves e superiormente refinados.
Elvia Bezerra é pesquisadora de literatura brasileira e colaboradora no IMS.
Os mais de cem cadernos de escritores guardados no acervo de Literatura do Instituto Moreira Salles mostram o quanto esses itens, cada vez mais raros nos nossos dias, serviram no passado de laboratório de criação literária. Esta série em construção revela a singularidade desses documentos e a natureza de seus autores. Confira a coleção de posts elaborados a partir deste material cuidado e catalogado pelo IMS.