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Tônia e Paulo, Carrero e Autran

06 de março de 2018

 

Quem assistiu a Um deus dormiu lá em casa, em 1949, não duvidou de que aquela moça extraordinariamente linda que contracenava com o também estreante Paulo Autran se tornaria uma das atrizes mais prestigiadas do teatro brasileiro. Nos fragmentos de suas memórias, lembra Autran aquela noite gloriosa: “A estreia foi um delírio. Uma semana depois, o espetáculo ganha cinco prêmios: melhor texto, melhor direção, melhor cenário (Carlos Thiré), revelação de atriz (Tônia) e revelação de ator (eu). Que alegria!”

 

Tônia Carrero e Paulo Autran em cena na peça Um deus dormiu lá em casa (1949). Fotógrafo não identificado (Arquivo Paulo Autran/Acervo IMS)

 

Um ano depois, Tônia Carrero e Paulo Autran estavam juntos novamente em Helena fechou a porta, em que a atriz entrava em cena, deslumbrante, cantando o bolero “Una mujer”, que João Gilberto gravaria anos depois naquele seu estilo cool, contrário ao da exuberante Tônia, que soltava a voz: “La mujer que al amor no se asoma no merece llamarse mujer”.

São incontáveis as vezes em que Tônia e Autran dividiram o mesmo palco. Juntos protagonizaram grandes sucessos e alguns fracassos, vistos sempre com muito humor por ele, memorialista nato, autor de saborosos textos em que conta sua extraordinária carreira de ator e sua trajetória de vida. Muitos desses textos, em que as referências a Tônia são frequentes, foram utilizados por ele em entrevistas, algumas delas hoje reproduzidas em livros. Resta separar o joio do trigo: identificar o que permanece inédito em meio aos documentos originais desse extraordinário arquivo, que se encontra sob a guarda do Instituto Moreira Salles desde 2007.

A partir disso, será possível reconstituir com mais fidelidade a história dessa dupla que marcou o teatro brasileiro. Reconstrução que não poderá dispensar as pastas com artigos de crítica cuidadosamente colados, inúmeros programas de peças, toda uma documentação indispensável sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) e a movimentação teatral de décadas em que Tônia se destacou tantas vezes, incluindo a criação da Companhia Tônia Celi-Autran (CTCA), ao lado do amigo e também do então marido Adolfo Celi, diretor de teatro italiano radicado havia pouco no Brasil.

 

Tônia Carrero em foto de publicidade da peça Uma certa cabana (1953). Fotógrafo não identificado. | Tônia Carrero e Paulo Autran em cena na peça Helena fechou a porta (1950). Fotógrafo não identificado (Arquivo Paulo Autran/Acervo IMS)

 

O romance com Celi nasceu quando ele a dirigiu em Uma certa cabana, em 1953, a primeira interpretação dela no lendário TBC, mais uma vez ao lado de Autran. Não tardou que atriz e diretor se apaixonassem. Na época Tônia já estava separada de Carlos Arthur Thiré, com quem mantivera um casamento por uma década, terminado em 1950. Dessa união, ela teria seu único filho, Cecil Thiré.  E o casamento com Celi desdobrou-se num outro, que incluiu o colega de palco: em 1956, nascia a Companhia Tônia Celi-Autran, cujo documento de fundação (abaixo), com objetivos bem definidos e programação não menos organizada, se encontra no arquivo de Autran no IMS.

 

 

Ainda nesse arquivo, é quase certo que um futuro biógrafo não desprezará também o telegrama que Tônia enviou a Autran, datado de 14 de setembro de 1992, quando seu filho, Cecil Thiré, dirigiu-o em O céu tem que esperar. Ainda que se refira ao amigo como “meu grande ex-companheiro” e se declare “sua eterna admiradora”, o texto da mensagem guarda um misto de amor e ressentimento, que não é incomum nas grandes amizades. Dele se destaca o seguinte trecho: “Compreendo que não possamos mais trabalhar juntos para não pôr em risco nossa amizade tão bonita. Não compreendo porém que depois de tanto tempo tão ligados você não tenha podido perceber em mim a artista que o país todo reconhece”.

Ambos estavam com setenta anos. Paulo Autran morreria em 2007, aos 85 anos, deixando Tônia desolada. A amizade fora mais forte que os melindres, e agora, quando Tônia fechou os olhos, quem sabe, se dará o reencontro de almas no infinito, “onde as constelações guardam fronteiras”.

 

Telegrama enviado por Tônia Carrero a Paulo Autran, 1992 (Arquivo Paulo Autran/Acervo IMS)

 

  • Elvia Bezerra é coordenadora de literatura do Instituto Moreira Salles