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Vão Gôgo Boite

05 de agosto de 2014

Pois é. Nem o próprio Millôr acreditou que sua popularidade em Lisboa levara os portugueses a abrir a Vão Gôgo Boite. Já tinha até ouvido falar na casa noturna que tinha como nome a personagem criada por ele na revista A Cigarra, em 1939, quando Frederico Chateaubriand lhe chamou para preencher as quatro páginas em branco do periódico, que tinham perdido patrocínio.

Vão Gôgo ganhou autonomia e dali partiu para O Cruzeiro, onde chegou a assinar dez sessões por semana. Só em 1962 o pseudônimo daria lugar ao verdadeiro nome do autor: Millôr.

Dois anos depois, já ilustrador de seus próprios textos e tradutor de peças de teatro, Millôr lançaria a revista quinzenal O Pif-Paf, que o regime militar ceifou no oitavo número, deixando seu criador endividadíssimo. Foi aí que apareceu, muito bem-vindo, o convite para assumir uma coluna no Diário Popular, “o jornal de maior expansão no mundo português”, de Lisboa, às quartas-feiras, colaboração que manteria durante dez anos e que recebeu deliciosa e completa descrição no artigo “Millôr além-mar”, da jornalista Kathleen Gomes, publicado na serrote 17 1/2, a serrotinha da Flip 2014.

Kathleen conta toda a história dessa colaboração em seu texto. Quanto a Millôr, só quando recebeu carta de Otto Lara Resende, adido cultural na Embaixada do Brasil em Lisboa entre 1967 e 1969, em que confirmava a existência da Vão Gôgo Boite, pôde o inventor dessa personagem se reconhecer definitivamente famoso na terra de Fernando Pessoa. Não que isso lhe bastasse: “Tava tudo errado mesmo, Otto, mas quando eu fui apanhar a borracha já era tarde”, escreveu ele naqueles anos sombrios de ditadura. Afinal era dele também a afirmação de que “viver é desenhar sem borracha”.

Com ou sem borracha, o carinho que devotava ao amigo era totalmente vitalício. Para ilustrá-lo, desenhava flor ao final da carta ou cartão em que misturava ironia e admiração: “Que esta te encontre, porém, no mais sadio dos maus humores. Pois essa, sei, é tua fonte de brilho literário e de alegria de viver. Os portugueses já te entenderam?”, duvidava ele.

 

Além dessa demonstração de afeto a Otto, há ainda um cartão, também florido e não menos irônico, que se reproduz aqui e se transcreve em seguida:

 

Transcrição do cartão:

Rio, 2.1.1989

Otto

Recebi e já não sei mais nada. Já que você gosta de uma boa melancolia; acho que a vida nos afastou, até o afastamento irrecuperável. Gostaria, neste momento, de ser rico como você e não escrever nem mais uma linha. Infelizmente, continuo ganhando o pão (e a manteiga, a margarina e a televisão Toshiba) com as besteiras que faço. Você falou em Saramago – depois que o apontei, tenho todo cuidado em falar de alguém – podem pensar que entendo de qualquer coisa. Evitei toda minha vida profissional (52 anos de carteira, completos agora em 28.3.90) ser guru de alguém. Sempre que me seguiam, eu espantava os seguidores, com medo: “Pelo amor de Deus, este caminho só dá pra um!” Agora, pra nenhum.

Se é que você me entende.

Com o mesmo afeto

Millôr

 

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