Uma certa melancolia e alguma gravidade sobressaem nos traços do rosto de Julieta Augusta Drummond de Andrade, a mãe do poeta de A rosa do povo. Nesta foto de 1915, há um século, portanto, mão direita reta sobre o colo, a esquerda recolhida, cabeça ligeiramente inclinada e um olhar oblíquo conferem à matriarca uma doçura triste. De tão jovem e frágil, mais parece irmã dos cinco filhos que a rodeiam, entre eles Drummond, então menino de 13 anos, braços cruzados, à esquerda da mãe.
Vinte anos mais tarde, e agora avó, ela cumpre seu papel protetor no abraço aos netos em dia de primeira comunhão. Aí é a gravidade que se impõe por meio do olhar apreensivo, em luta com um levíssimo esboço de sorriso nos lábios finos, linhas que o filho poeta herdou.
Talvez essas duas fotos sejam suficientes para desenhar a feição psicológica que se desenvolve por trás dos traços fisionômicos e que se revela na correspondência que enviou ao filho. Os temas de que trata nas breves cartas que lhe escreveu desde que, em 1934, ele trocou Belo Horizonte pelo Rio de Janeiro, são, com frequência, questões de saúde ou ligeiras notícias familiares, sempre carinhosas e vigilantes. Quem melhor pode falar sobre essas cartas é, naturlamente, o destinatário, que, em O observador no escritório, registrou:
Há em todas um profundo lamento: do ser apegado à família por intenso amor, aguçado pela separação ou experimentado no desentendimento passageiro. […] Fico observando, aqui e ali, a delicadeza de suas expressões, o subentendido discreto de umas, a veemência afetiva de outras, o espírito bem formado e seguro das razões morais de sua vida, em que eu ainda não atentara bem, acostumado como estava a encontrar nela apenas o ente sensível e romântico.
Das mais de mil cartas que Drummond recebeu da mãe e dos irmãos, 198 foram escritas por ela. Esse material, agora digitalizado, começa a ser disponibilizado para consulta na base de dados intranet do Instituto Moreira Salles, guardião de uma fatia mais pessoal do arquivo do poeta, a partir do Dia D. Lendo-o constata-se que, de modo geral, enquanto o irmão mais velho, Altivo, mostra seu encantamento pelo poeta de “No meio do caminho” em cartas largas de generosidade e admiração, a mãe restringe os assuntos ao território da família e do afeto constante, pontual, como nesta carta de janeiro de 1935, que encerra, como o em todas as outras, o amor que todo filho espera e que lhe basta:
Meu filho muito querido,
Muitas felicidades te desejo este ano e bem assim a Dolores e Maria Julieta. Você me disse na nossa despedida que me escreveria quando aí chegasse, com certeza muito serviço te privou desse trato; foi tão pouco o tempo da tua estadia aqui que apenas mitigou um pouco as saudades, antes pouco do que nada.
Eu continuo sempre doente, e sentindo muita fraqueza e desânimo. […]
Nesta carta vai todo o meu afeto e grande amor. Deus te abençoe. Mãe sempre amiga de coração
Julieta
Na casa da rua Joaquim Nabuco 81, em Copacabana, onde morou até 1962, os envelopes com a bela caligrafia materna chegavam com regularidade, portadores de notícias que, se não eram palpitantes, testemunhavam insuperável fidelidade que se manteve até a morte dela, em 1948. Notícias que vinham do endereço do Hospital São Lucas, em Belo Horizonte, onde Julieta Augusta passara a ocupar um apartamento desde 1941. Ali, afirma o biógrafo de Drummond, José Maria Cançado, dispunha de conforto equivalente ao que se tem hoje em flats, além de atendimento médico e religioso. A hospedagem se prolongou até o último ano de vida, quando deixou a instituição para morrer em sua Itabira. E o poeta, então, choraria: “Fosse eu Rei do Mundo,/ baixava uma lei:/Mãe não morre nunca.”
O período vivido no Hospital São Lucas não deixou de constituir regalia que Drummond, morador do Rio de Janeiro, onde era chefe de gabinete do ministro da Educação, Gustavo Capanema, conseguira com o provedor do hospital belo-horizontino, José Maria de Alkmin, futuro vice-presidente no governo do marechal Castello Branco e a quem se atribui, além do reconhecido talento para a política, as qualidades de repentista. Terá ele algum dia visitado Julieta Augusta? Terá arrancado da hóspede ilustre um sorriso em meio às inquietações por que ela passava na solidão daquela casa de saúde? Reza a lenda que, do seu 1,57 de altura, o diretor nunca perdia a parada, e, certa vez, ao mandar lembranças ao pai de um rapaz, e tomar conhecimento, pelo próprio moço, da sua orfandade paterna, não perdeu a graça: “Morreu pra você, filho ingrato! Ele sempre continuará vivo no meu coração”.
Se as cartas de Julieta Augusta não trazem opiniões ou revelações surpreendentes, seu legado revela-se precioso num simples pedaço de papel em que o poeta conservou, sob o título “Recomendações da mamãe”, os três conselhos que ela, na função de formadora da personalidade dos filhos, lhe dera. Na trinca de observações da mais pura e intuitiva sabedoria materna, ela terá contribuído não só para modelar o caráter do filho, mas para ficar para sempre na sua memória. São estes os conselhos:
Como se vê, não foi sem bons motivos que ele escreveu “Para sempre”:
Por que Deus permite
que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite,
é tempo sem hora,
luz que não apaga
quando sobra o vento
e chuva desaba,
veludo escondido
na pele enrugada,
água pura, ar puro,
puro pensamento.
Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestígio.
Mãe, na sua graça,
é eternidade.
Por que Deus se lembra
– mistério profundo –
de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto se seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho.
O poema “Para sempre”, de Drummond, em leitura de Alberto Martins:
Essa leitura faz parte do DVD “Vida e verso de Carlos Drummond de Andrade: uma leitura“, no qual quatro importantes escritores contemporâneos se reúnem para apresentar a vida e a obra de Carlos Drummond Andrade.
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