Armando Freitas Filho é um homem grave de nascença. Mais ou menos dos oito aos 80, que completa em 18 de fevereiro de 2020, aprimorou com requintes de crueldade um traço de personalidade comum aos hipocondríacos de pedra como ele: o poeta, não é de hoje, pensa todos os dias na morte. De tão dramático, chega a ser cômico. Gaguejou severamente para dizer como está se sentindo a esta altura da vida – “O corpo é um traidor, trai você de maneira mórbida” –, em conversa com Laura Liuzzi e Alfredo Ribeiro, da equipe de internet do IMS, gravada em vídeo no dia 23 de janeiro de 2020.
É só um aperitivo (embora o aniversariante não beba nada) para anunciar a grande entrevista conduzida por Eucanaã Ferraz com Armando na berlinda, arguido e provocado por um grupo de amigos e intelectuais (Heloisa Buarque de Hollanda, Mário Alex Rosa e Eduardo Coelho). O evento aberto ao público acontece na noite de 4 de março, no cine-auditório do IMS Rio, celebrando – além da efeméride dos 80 anos do poeta –, a recente chegada de seus arquivos pessoais ao acervo de Literatura do Instituto Moreira Salles.
Nosso papo a três começou na mureta com vista para o canto da Baía de Guanabara que banha a Urca e se alongou a 50 metros dali, na casa onde Armando vive há décadas com a mulher Cristina e o filho Carlos. Ele espera, sinceramente, que ninguém apareça em sua “fortaleza” no dia de seu aniversário. “Fazer 80 anos é terrível./Uma espécie de mistura/de alegria e tristeza/de um beijo e de um adeus”, exprimiu em versos o momento de despedida – e já de saudade – de tudo que em fins de 2019 doou para conservação pelo IMS.
Não é o fim da linha. Seu próximo livro de poemas será lançado pela Companhia das Letras no segundo semestre de 2020: Arremate tem título sugestivo do desfecho que antevê para si e também não foge do assunto: “Estou de saída./Está na hora./Amanhã é feriado/ou ferido?/Estou entre o abraço/e o adeus sem aceno” – anuncia em ‘Viagem e testamento’. (leia mais abaixo três poemas inéditos de Armando Freitas Filho, todos de Arremate).
A homenagem que o IMS vai lhe prestar na noite de 4 de março começa às 18h com a exibição do documentário Manter a linha da cordilheira sem o desmaio da planície (2016), de Walter Carvalho, que durante sete anos filmou a trajetória do autor observando sua rotina de escrita. Quem estiver na plateia para assistir aos 88 minutos de projeção do filme verá que o poeta pode até estar mais emotivo e indignado com o passar dos anos – chora à toa com memórias afetivas, tem ódio do governo –, mas continua o mesmo. “Eu nunca fui muito alegre para dizer a verdade.” É dono de um humor que surpreende e desconcerta (confira no vídeo os motivos de sua declarada aversão a comidas coloridas, a hotéis e a banheiros públicos). Volta e meia toma uma variante inesperada ao relato quase sempre denso, à flor da pele, que constrói para a própria vida. “Minha cabeça nunca foi intacta, desde pequeno eu era estranho.”
Filho único de família castradora, católico praticante até os 33 anos, membro abstêmio de uma geração que pegou de tudo no Baixo Leblon, hipocondríaco a ponto de transformar qualquer incômodo em doença terminal, gago e insone de carteirinha, o poeta alimenta uma expectativa de sobrevida: “Espero que a minha poesia não envelheça por 40 anos, depois não sei.” No mais, como ele disse em entrevista de 2003 a Tutty Vasques para a revista Veja Rio, “não há saída viva para a vida”. Viva Armando Freitas Filho!
PS: Depois que este post foi publicado, Armando ligou agradecido e angustiado. Feliz pelo resultado da entrevista, mas à beira de um colapso por ter esquecido de mencionar no vídeo “a Rainha Dorrit Harazim” entre os poucos jornalistas que ainda lhe interessam ler no noticiário. Está feita a correção. Agora vê se relaxa, poeta. Feliz aniversário!
Três poemas inéditos
Da safra reunida no livro Arremate, com lançamento anunciado pela Companhia das Letras para o segundo semestre de 2020.
ENTREATO
Não há mais tempo
de ler algo de largo fôlego.
Nem de reler o mar de Melville.
As metáforas de mar estão cansadas
mas as ondas não cansam
de bater no paredão de cada dia.
Não há mais tempo
de paralisar-me para me ver imóvel
no espelho amansado pelo uso ou pretendo
me ver como os outros me veem
sem cuidado narcísico e ilusão?
Não há mais tempo
de limpar o céu das nuvens roucas
e toda noite lidar com o equilíbrio
de dormir na linha da cama
sem saber se vou cair no sono
ou se vou cair por terra.
DOIS PARES DE BOTAS
O par de botas de Van Gogh
é um dos seus autorretratos
mais fidedigno: usado
até a exaustão tem a marca
de todos os tropeços depois
do trabalho, do caminho
da busca vida afora depois
de desamarrar os pés cambaios
de tanto andar perdido
foram embora sem volta.
O par de botas de Carlitos
é negro, anda e desanda
sem parar, espalhado
dez pras duas a vida inteira
aprontando pontapés
nos fundilhos prepotentes
ou calçando patins
indo à beira do amor cego
indo embora com ela
para um novo horizonte.
VIAGEM E TESTAMENTO
Todo o meu dinheiro
é para esta viagem cega.
Não poupem um níquel.
Quero tudo de primeira
mas sem adornos.
A morte não tem preço
predeterminado
pode até ser de graça
fulminante nos lençóis
ou gastar tudo o que tenho
em camas provisórias.
Diante da Inevitável
me encerro e me despeço.
Estou de saída.
Está na hora.
Amanhã é feriado
ou ferido?
Estou entre o abraço
e o adeus sem aceno.