As duas passagens de Walther Moreira Salles pela direção do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro encerram a série sobre as atividades do homem de negócios como patrono das artes. Seu envolvimento com o MoMA e com o MASP foram os primeiros relatos desta história, baseada em documentação catalogada no Acervo Walther Moreira Salles do IMS.
Walter Moreira Salles e o MAM-RJ
Membro do Conselho Internacional e do Conselho de Notáveis do Museum of Modern Arts of New York, doador e financiador do Museu de Arte de São Paulo, Walther Moreira Salles assumiu responsabilidades maiores no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Foi diretor-tesoureiro em 1951 e 1952 e presidente entre 1968 e 1974, período de turbulência dentro e fora do museu, em que suas habilidades foram postas à prova e o MAM do Rio de Janeiro viveu uma das fases mais brilhantes.
Algumas coincidências aproximam essas instituições, às quais se deve acrescentar o MAM de São Paulo, do qual Walther Moreira Salles participou de maneira muito tênue. A primeira coincidência é temporal, pois os três museus brasileiros foram criados logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. Não foi um acaso: ao ambiente de euforia somava-se uma situação econômica favorável, que alimentou entre empresários e intelectuais a ideia de que a responsabilidade pela cultura do país não cabia apenas ao Estado. Nesse modelo, ganham peso as instituições culturais promovidas por organizações privadas de interesse público.
A segunda coincidência é ainda mais específica: todos pretendiam ser polos ativos de disseminação da cultura como um todo. Seguiam, especialmente os museus de arte moderna, o modelo do MoMA de Nova York, deixando de lado o exemplo dos clássicos museus europeus. Assim, no Rio e em São Paulo alguns expoentes do meio empresarial e cultural mobilizaram apoiadores e se propuseram a trazer para o Brasil esse novo modo de promover a cultura. O resultado foi a criação do MASP em 1947, do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP) em 1948 e, no mesmo ano, do MAM-RJ.
MAM-RJ, primeiros tempos
Logo no ano seguinte ao fim da guerra, o industrial Raymundo Ottoni de Castro Maia reuniu em sua residência de Santa Tereza outros colecionadores e alguns intelectuais – entre eles o arquiteto Oscar Niemeyer e o escritor Aníbal Machado – para discutir a formação de um museu de arte moderna no Rio de Janeiro.
Estava também nesse encontro Nelson Rockefeller, presença relativamente frequente no Rio de Janeiro daquela época, aonde o levavam não só os negócios mas também suas funções no governo americano durante a guerra. Não há registro, mas Walther Moreira Salles poderia muito bem estar por lá: o jovem banqueiro morava no Rio desde 1940, frequentava os mesmos ambientes, era amigo das mesmas pessoas. Há no Arquivo WMS uma carta muito afetuosa enviada naquele mesmo período por Nelson Rockefeller, que, por sinal, estava na reunião como uma espécie de conselheiro por ser presidente do MoMA de Nova York.
Castro Maia assumiu a direção da comissão organizadora, e em 5 de maio de 1948 publicava-se a ata da Assembleia de Constituição do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, uma sociedade civil sem fins lucrativos de interesse público que tinha como finalidade promover exposições de artes plásticas e também incentivar atividades de pintura e gravura, fotografia, cinema, música, dança, teatro e arquitetura – mais tarde, também desenho industrial.
Sua manutenção deveria vir de recursos obtidos com ingressos de exposições e de espetáculos, mensalidades de cursos e contribuições de sócios. Mas, situado na cidade sede do governo federal, a proximidade de alguns membros da diretoria com autoridades públicas fez com que acabasse dependendo fortemente do apoio governamental.
A primeira diretoria, com mandato de 1948 a 1951, é uma mostra do prestígio da nova instituição:
Presidente de honra Gustavo Capanema
Presidente Raymundo Ottoni de Castro Maia
1º vice-presidente Manuel Bandeira
2º vice-presidente Marcelo Roberto
Diretor executivo Josias Leão
Vice-diretor executivo Rodrigo Mello Franco de Andrade
Secretário geral Maria Barreto
Secretário adjunto Antônio Bento de Araújo Lima
Tesoureiro Barão de Saavedra
Tesoureiro adjunto Quirino Campofiorito
A primeira sede foi o edifício do Banco Boavista, projetado por Oscar Niemeyer. Em 1949 foi realizada a primeira mostra, sobre pintura europeia contemporânea, com obras cedidas por associados. Em 1952 o espaço de exposições passou a se abrigar, após adaptação de Oscar Niemeyer, nos pilotis do icônico prédio do Ministério da Educação e Saúde, uma mostra de reconhecimento oficial. Ali, nesse mesmo ano, apresentou as obras dos artistas premiados na 1a Bienal de São Paulo.
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Walther Moreira Salles vai participar da segunda diretoria, com mandato de 1951 a 1954:
Presidente Raymundo Ottoni de Castro Maya
Vice-presidente Francisco Clementino de San Tiago Dantas
Diretora executiva Niomar Moniz Sodré Bittencourt
Diretora executiva adjunta Carmen Portinho
Diretor tesoureiro Walther Moreira Salles
Secretário Lauro Salazar
Era igualmente composta de notáveis, mas Niomar Moniz Sodré merece referência especial. Casada com Paulo Bittencourt, proprietário do Correio da Manhã, foi a grande impulsionadora do MAM-RJ nessa primeira fase e participou formalmente de todas as diretorias até 1961, quando foi homenageada com o cargo de presidente de honra – e continuou a influir.
Há poucos registros no Arquivo WMS sobre essa função de tesoureiro. Walther Moreira Salles atuava principalmente como arrecadador de fundos – pelo que se percebe da insistente correspondência de Niomar, empenhada em Paris e em Nova York na aquisição de quadros para o acervo do museu, que, segundo ela, “faz vergonha”. Era também doador, o que lhe valeu o título de sócio-benemérito “por relevantes serviços prestados à novel instituição, bem assim pelo donativo de incalculável valor com que agraciou este Museu” — é o que se lê em carta de Castro Maia transcrita abaixo:
Walter,
Naturalmente o assunto vai ser o nosso museu. Quando a gente se mete em alguma coisa fica de ideia fixa. Ao menos eu sou assim. Tenho aprendido muito e tido ótimos contatos. Já escrevi a Maria e ao Raymundo. Mas o assunto com você é outro (cada um dentro das suas funções).
Há jovens aqui - todos naturalmente, com mais de 50 anos (o que faz Paulo dizer que vai ser pintor também, pelo jovem) com excelente pintura e que eu poderia conseguir para o Museu - por causa dos contatos - por preço razoabilíssimo. A dificuldade é o dinheiro. Pensei numa solução: pedir a você para me mandar se possível por câmbio oficial, 100 contos meus, da minha continha no seu banco.
Não mandarei cheque porque não tenho aqui, mas espero que você faça confiança. Com essa importância - que depois o Museu me pagará quando chegarem os seus bons dias - no que creio convictamente, se nós trabalharmos - já começaremos com um patrimônio razoável - em vez do que vemos que, com 2 ou 3 exceções - até - faz vergonha.
Não serão coisas de grande valor (bem visto o preço) mas telas que têm o seu valor e futuramente talvez sejam importantíssimas. Acabo de ver na grande Exposição dos *Fauses que continha neste momento, quadros do Valta.
Valtá, há cinco anos atrás era pouquíssimo conhecido. Eu me apaixonei e levei ao Rio uma Tela que está na nossa sala - por preço irrisório, creio que 10 ou 30 mil francos. Imagina você! Hoje nem sei o que poderia custar...
Responda-me o mais breve possível. Vamos daqui para Deauville e depois temos Paris por mais 15 dias.
Escreva para a Embaixada, estou sempre em contato. 45, Av Montaigne. E sua lista como vai? Recheada ?
Abraços de
Niomar17/8/51
Walther Moreira Salles não completou o mandato. Em 18 de maio de 1952 apresentou seu pedido de demissão por ter de se ausentar do país, nomeado por Getúlio Vargas para a Embaixada em Washington. Afastar-se do cargo não significou escapar ao assédio de Niomar. Determinada, insistente e imbuída da missão de constituir um acervo digno, ela bombardeava o embaixador com cartas e telegramas pedindo-lhe que pressionasse potenciais doadores americanos. Como se vê na carta de 1956, em que reclama de Nelson Rockefeller, a aflição de Niomar aumentou depois que o principal objetivo passou a ser a construção da sede, um conjunto de três prédios projetados por Affonso Eduardo Reidy cercados por jardins de Roberto Burle Marx.
A importância que o museu já havia adquirido fez com que em 1954 a Câmara Municipal lhe destinasse um terreno de 40 mil m2 no recém-criado Aterro do Flamengo. No mesmo ano iniciou-se a construção da sede definitiva, orçada em US$ 8,5 milhões. A obra começou pelo bloco escola, evidenciando a importância atribuída às atividades de ensino e de formação de público e onde provisoriamente se fariam as exposições. O bloco exposições foi concluído em 1958 e o bloco teatro, só 50 anos depois.
A pedra fundamental foi lançada pelo presidente da República, João Café Filho. Walther Moreira Salles doou Cr$ 1.000.000,00 e Nelson Rockefeller, US$50.000,00, além de um quadro do importante pintor norte-americano Jackson Pollock, único até hoje na América Latina, e que a atual diretoria pretende leiloar para sanar a crise financeira crônica da instituição.
Ainda no Ministério da Educação e Saúde, o MAM-RJ realizou uma média de dez exposições anuais e recebeu cerca de 200 mil visitantes. Ao mesmo tempo iniciou sua atividade educativa por uma biblioteca dirigida por Lucia Miguel Pereira, logo acompanhada porcursos em diversos locais no centro da cidade, a cargo de colaboradores como Ivan Serpa, Décio Vieira e Fayga Ostrower. O impacto foi grande, e em pouco tempo alunos e professores formavam o Grupo Frente, marco histórico do movimento construtivo e incentivador da abstração geométrica no Brasil, formado por Ivan Serpa, Aluísio Carvão, Décio Vieira, Lygia Clark, Lygia Pape, aos quais se juntam Hélio Oiticica, Franz Weissmann, Abraham Palatnik. Intelectuais como o crítico de arte Mario Pedrosa e o poeta Carlos Drummond de Andrade também colaboraram.
Em 1955 começaram as atividades da Cinemateca, com a exibição regular de filmes de arte no auditório da Associação Brasileira de Imprensa, também no centro da cidade, e a oferta de cursos técnicos de cinema. Só em 1959, já nas novas instalações, começou a funcionar o ateliê de gravura, ao qual aderiram, entre outros, Maria Bonomi, Anna Letycia, Roberto de Lamonica.
Os pilotis da rua da Imprensa abrigaram mostras de consagrados artistas nacionais e estrangeiros e, leal desde a origem à sua vocação, o museu acolheu grupos e movimentos de vanguarda de diversas tendências, promovendo a Exposição do Grupo Frente, em 1955, e a Exposição Nacional de Arte Concreta, vinda de São Paulo, em 1957. Em 1959 deu-se a exposição do grupo neoconcretista, carioca, com o poeta Ferreira Gullar à frente, e que rompeu com os princípios concretistas – uma afirmação vanguardista de contestação da vanguarda.
O MAM-RJ tinha propósitos ambiciosos: o museu e a arte deveriam ser agentes democráticos para levar o Brasil ao futuro. Os artistas que abrigava não queriam criar apenas uma nova arte, mas uma nova sociedade. Museu não era repositório de memória, mas produtor de memória. A escola não servia ao museu, mas o museu servia à escola.
Nos jardins do Aterro
Em janeiro de 1958, com a presença do presidente Juscelino Kubitschek, foi inaugurado o bloco escola, com 10 mil m2. O prédio se integrava aos jardins, ao mar e às montanhas, era de fácil acesso aos moradores de todos os bairros e em si mesmo era um convite e uma facilitação para os visitantes. Os jardins inacabados e o próprio Aterro do Flamengo, ainda em construção, conferiam ao prédio um ar de incompletude, mas isso contribuía para conferir ao empreendimento um quê de futuro. Era mais do que um conjunto de salas de exposições e de aula, fazia parte da eterna paisagem do Pão de Açúcar e do Corcovado. Nas palavras de Affonso Reidy, “o fluente substituía o confinado, o espaço do museu era o espaço da cidade”. Isso marcaria o museu e a cidade. Mais tarde, o historiador e crítico de arte Frederico Morais, que teria uma atuação crucial no período mais criativo do MAM-RJ, inspirado nessa concepção arquitetônica e na ideia de que arte não era apenas produto de artistas mas também produção criativa de pessoas comuns, desenvolveria a ideia de museu como plano piloto da cidade.
O tempo em que se deu a instalação definitiva do museu não poderia ser mais promissor. No final da década de 1950 o país vivia a euforia desenvolvimentista simbolizada pela modernidade de Brasília, e com a inflação e os grandes investimentos parecia haver dinheiro para tudo. A vida cultural do Rio de Janeiro era só alegria – tempos de bossa nova e grande literatura. No mundo todo, as artes plásticas passavam por uma fase de transformação que se mostraria revolucionária. O MAM-RJ tinha à frente uma direção pautada por uma política de intensa extroversão e contava com um grupo de colaboradores composto por artistas excepcionais, produzindo arte conectada com seu tempo e lugar.
A década de 1960 também foi excelente para o MAM-RJ, que se solidificou como um grande centro de vanguarda da arte nas Américas. O golpe militar de 1964 não conseguiu quebrar o impulso contestador no museu. Os cursos se multiplicaram e também as exposições, com ênfase no novo: nesses primeiros anos de ditadura foram mostradas as vanguardas da França, da Holanda, da Argentina e muitas outras, com destaque para a brasileira, nas mostras Opinião 1965, Opinião 1966 e Nova Objetividade (1967).
Em Opinião 65, uma mostra com 29 artistas brasileiros e estrangeiros e nome inspirado num show de protesto, Hélio Oiticica mostrou pela primeira vez seus parangolés, capas, estandartes e tendas usadas por passistas da Mangueira que provocaram espanto no público presente à abertura. Foram expulsos e acabaram a apresentação nos jardins. Opinião 66 foi uma exposição à qual faltava, segundo Mario Pedrosa, “a frescura da primeira”. Já Nova Objetividade Brasileira teve grande impacto. Nela Hélio Oiticica expôs Tropicália, um penetrável com elementos aparentemente díspares, uma arara, vasos de plantas, seixos, areia, um aparelho de televisão. Para ele era mais que uma obra, era “uma posição estética diante das coisas”, partilhada por artistas de diversos campos, como teatro, cinema e, especialmente, música.
O experimental sai do museu e cai no mundo, a experiência contemplativa individual se inverte numa vivência coletiva. Em tempos de um regime ditatorial cada vez mais repressor, o MAM-RJ era um polo de produção e percepção das artes como contestação. A recusa ao que era estabelecido se acentuou em 1968, ano de efervescência radical, e o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro refletiu isso, mais do que qualquer outro centro cultural brasileiro.
Em junho daquele ano, pesando prós e contras, Walther Moreira Salles aceitou o convite para substituir Rui Gomes de Almeida, demissionário, na presidência da instituição.
Walther Moreira Salles, presidente
Profissionalmente, não parecia um bom momento para assumir novas funções potencialmente espinhosas. João Moreira Salles, seu pai, havia morrido em março daquele ano, e coubera ao filho assumir, entre outros, o cargo de presidente da União de Bancos Brasileiros – que estava realizando operações de grande vulto, como a compra da posição do Grupo Rockefeller no Banco de Investimento do Brasil. Fora da área financeira, o Grupo Moreira Salles se expandia: no ano seguinte, constituiria a Unipar (União de Indústrias Petroquímicas S.A.) e aumentaria sua participação na Companhia Siderurgia Belgo-Mineira, então a maior siderúrgica privada no Brasil, numa operação de imensa complexidade.
Politicamente também não era um bom momento. Suas relações com os militares não eram nada boas. Delfim Netto, em entrevista realizada para o Arquivo WMS, conta que nessa época “aquele pessoal mais extravagante, a tal linha dura, aquele pessoal idiota, tinha imaginado que cassar o Walther Moreira Salles era um ato de extrema repercussão, de afirmar o nacionalismo.” Quando soube dessa intenção, Delfim procurou o presidente general Costa e Silva e argumentou que as relações de Walther Moreira Salles com o sistema bancário internacional e o governo norte-americano eram tão fortes que sua cassação fecharia as portas para novos financiamentos, essenciais para a rolagem da dívida externa brasileira. “Na verdade, eu estou convencido” diz Delfim Netto, “de que nós íamos ao default, se tivessem cassado o Walther nós íamos ao default. Todo suporte americano ia desaparecer naquele instante!”
E não nos esqueçamos que 1968 foi um ano de grandes agitação política nas ruas e também no MAM-RJ, principal polo de contestação nas artes plásticas – que já não se limitavam a quadros na parede, mas eram também manifestações políticas e intervenções públicas. Ele não podia deixar de saber que seria uma tarefa difícil.
Apesar de tudo, aceitou o convite e por seis anos (seria reeleito em 1971) assumiu a responsabilidade pelo museu. A primeira diretoria tinha a seguinte composição:
Presidente Walther Moreira Salles
1o vice-presidente Euclydes Aranha
2 o vice-presidente Nelson Faria Bapstista
Diretor executivo Maurício Roberto
Diretor executivo adjunto Madeleine Archer
Diretor secretário Thiers Martins Moreira
Diretor tesoureiro Marcílio Marques Moreira
Não foi, naquele período, sua única atividade no campo da sociedade civil organizada. No ano seguinte assumiria a presidência da Comissão Financeira da Copa do Mundo de Futebol de 1970, além de fundar e presidir o Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais, o IBMEC. Essas funções simultâneas ajudam a entender uma das razões para aceitar a presidência do MAM-RJ: não era uma escolha, mas uma obrigação. Cabia aos empresários – deixou isso claro em mais de um artigo ou discurso – dedicar parte de seu tempo e seus conhecimentos às atividades sem fins lucrativos.
Nem tudo era penoso na direção do MAM-RJ. Em 1967 o bloco exposição havia sido concluído, dando monumentalidade ao museu. Era o mais importante centro cultural da cidade, num momento em que as manifestações artísticas passavam por uma revolução. Para alguém tão envolvido com as artes, colocar-se à frente de um polo transformador podia ser uma obrigação prazerosa. Walther Moreira Salles certamente sabia da importância de seu papel ao aceitar o encargo: seria difícil encontrar outro com tanta capacidade de gerir uma instituição em situação financeira precária, tanta sensibilidade artística para entender o que acontecia e tanta habilidade diplomática para deixar que fervilhasse a rebeldia criativa sem deixar que fossem rompidos os laços institucionais.
Mas o MAM-RJ tinha outra face. Na época, era praxe que os visitantes oficiais mais ilustres de passagem pela cidade fossem homenageados com uma recepção em seus salões. A rainha da Inglaterra, os presidentes do Chile e do Uruguai, o primeiro ministro de Portugal, o enviado especial do presidente dos Estados Unidos – no caso, Nelson Rockefeller – e outros mais ali foram homenageados, além de um banquete para 700 pessoas oferecido ao presidente general Costa e Silva. Sob a direção de Walther Moreira Salles, o MAM-RJ se transformaria, em suas próprias palavras, na “sala de visitas” da cidade.
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Era fundamental sanear as finanças, em situação de “quase emergência”, como disse mais tarde em um discurso. Uma de suas primeiras providências foi convidar Marcilio Marques Moreira, com quem já havia convivido na Embaixada do Brasil em Washington, para o cargo de diretor-tesoureiro. O diplomata aposentado trabalharia por muitos anos no Grupo Moreira Salles, mas essa seria sua primeira colaboração na área privada.
O museu vivia, precariamente, de recursos oriundos de ingressos, aluguéis do restaurante e da cantina, contribuições de sócios, doações privadas, subvenções públicas. No arquivo há pouca coisa relativa à captação de recursos privados – exceto dele próprio – mas aponta uma atuação intensa na busca de apoio junto a vários ministérios e ao governo do estado (então, Guanabara). Presidente e tesoureiro tinham bom trânsito junto às autoridades civis, o que facilitava a tarefa.
Uma outra fonte importante de recursos era o aluguel de espaço no museu para as chamadas atividades “não culturais”. A começar por uma reunião do Fundo Monetário Internacional em 1967, repetiram-se grandes eventos – além das homenagens oficiais, também congressos e encontros empresariais e mesmo comemorações de caráter particular. A “sala de visitas” era rentável.
No Arquivo WMS consta um documento de 1970 apresentando a composição do orçamento do MAM-RJ. Embora não seja perfeitamente representativo, pela presença de um déficit importante que desapareceria nos anos seguintes, nele se vê que as subvenções oficiais eram responsáveis por mais de 42% das receitas, 34% eram oriundos de fontes diversas – aluguéis de espaço, arrendamentos do restaurante e da cantina, doações. Cursos e exposições se pagavam, e a maior rubrica de despesa era pessoal – mais de 150 funcionários, naquele momento.
Em discurso de 1974, quando se afastou do segundo mandato, Walther Moreira Salles fez um balanço da gestão, destacando a situação financeira plenamente recuperada graças à racionalização administrativa e ao grande aumento de receitas. Deixava o museu superavitário, depois de muitas dificuldades – em 1970 os jornais anunciavam um possível fechamento já no ano seguinte, por falta de recursos. Ao se despedir, apontou as providências tomadas para aumentar as receitas, sugeriu mudanças na administração e uma maior aproximação entre diretoria e colaboradores e aproveitou para comunicar que, mesmo com a folga financeira, faria uma doação pessoal no valor da linha de crédito que seu banco havia aberto anos antes e que fora essencial para atravessar o período de crise.
Suas sugestões não foram seguidas. Uma interação maior entre artistas e administração foi considerada uma ideia “bizantina” por seu sucessor, o cirurgião plástico Ivo Pitanguy. Em pouco tempo o superávit tornou-se apenas uma lembrança, e a racionalização da gestão não foi levada adiante. Em 1978, a falta de cuidado chegou ao ponto de ser permitida a realização de um show de música numa das salas de exposição, com consequências trágicas – um curto circuito provocou um incêndio que destruiu quase todo o acervo.
As finanças, porém, não eram o único problema que a direção tinha de enfrentar. Em dezembro de 1968 foi implantado o Ato Institucional no 5, que mesmo não impedindo que as contestações políticas e artísticas continuassem trouxe uma repressão policial cada vez mais violenta – também no MAM-RJ.
Já no primeiro semestre de 1969 ocorreu a primeiro intervenção. O Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro fora convidado pelo Itamaraty para coordenar a escolha das obras a serem enviadas à Bienal de Paris. A seleção deveria ser apresentada em uma exposição. Era um conjunto de “obras fortes”, que não agradaram aos órgãos da repressão. A exposição foi proibida e o MAM-RJ foi fechado, uma violência inédita. O museu foi reaberto, as obras não foram enviadas a Paris e teve início um movimento de boicote à Bienal de São Paulo.
Mesmo sem uma ação direta, no MAM-RJ era comum a presença de policiais rondando as cercanias e de informantes disfarçados nos cursos, no quadro de funcionários e entre os frequentadores da cantina. Esta merece menção: é difícil reproduzir hoje o burburinho dos jovens artistas, intelectuais e estudantes que faziam dela um ponto de encontro quase obrigatório e de onde se espalhavam tendências, modas e comportamentos, onde começavam namoros e estalavam conflitos, onde se discutia tudo, política, arte e teoria, geralmente no tom exaltado dos que têm a certeza radical dos jovens.
Os conflitos políticos exigiam diplomacia da presidência. Há no Arquivo WMS, por exemplo, cartas do diretor executivo Mauricio Roberto para o presidente relatando panfletagens realizadas por Cosme Alves Neto, responsável pela Cinemateca. Os panfletos foram recolhidos e punições foram pedidas. Em outra carta, Fernando Quintella, que sucedeu a Mauricio Roberto, reclama da atuação de Heloisa Lustosa (que mais tarde ocuparia a presidência e em cuja gestão se daria o trágico incêndio de 1978) em favor da indicação do crítico Roberto Pontual para coordenador de cursos. O diretor temia a reação dos militares, dadas as suas posições marcadamente esquerdistas. A questão chegou aos jornais e Roberto Pontual foi apenas contratado como professor.
Ao longo dos dois mandatos, vários membros da diretoria pediram demissão. As razões apresentadas são sempre formais, mas talvez escondam divergências internas – que não seria polido explicitar. O que não existe no arquivo são documentos que registrem as manifestações do presidente a respeito das contestações e da repressão policial. Tal ausência talvez indique um método: silenciosamente ele amortecia choques, aplacava conflitos, reduzia suas repercussões e preservava a integridade da força criativa do museu.
Não era fácil. As profundas mudanças na própria concepção de arte não eram consenso: se alguns críticos de arte e membros da diretoria aprovavam, outros consideravam certas obras “grotescas”. Os enfrentamentos de alguns artistas – como Antônio Manuel, que apareceu nu na abertura de uma exposição, chocavam os mais conservadores. A repressão não dava tréguas. Fatos banais, como a exibição pelo artista plástico Carlos Vergara de pequenos filmes em super-8 não autorizados pela censura provocaram imediata reação policial.
A arte como ferramenta política de oposição ao regime militar não provocavam apenas repercussões policiais, mas dificultava as relações com o governo. Como vimos, as subvenções oficiais eram uma parte significativa das receitas do MAM-RJ, e ao fluírem ao longo de dois mandatos mostra a influência e a habilidade política de Walther Moreira Salles.
O MAM-RJ era uma instituição de muitas caras. Sempre abrigando movimentos de vanguarda, suas salas sempre tiveram exposições de obras da arte moderna consagrada. Se, por um lado lá aconteceram mostras como o Salão da Bússola, em 1969, quando surgiu uma geração de artistas conceituais, também foram realizadas exposições de Paul Klee, Carlos Scliar e Pierre Bonnard, por exemplo.
O bloco escola repetia essa dualidade. Desde 1969 coordenado por Frederico de Morais, crítico e historiador da arte, que lhe deu organicidade, ampliou sua atuação, oferecendo cursos ao longo de todo o dia, e diversificou seu alcance, indo da Unidade Experimental, da qual participaram Cildo Meireles, Guilherme Vaz e Luiz Alphonsus, entre outros, ao Ateliê de Gravura, onde se ensinavam técnicas tradicionais de gravura em metal.
Isto se repetia em todos os espaços do museu. Os salões acomodavam festas riquíssimas, enquanto as salas de aula acolhiam centenas de populares que nos fins de semana assistiam a cursos gratuitos. Recebia dinheiro de um governo avesso a manifestações públicas e promovia verdadeiros happenings, como os Domingos de Criação organizados por Frederico Morais, que ao longo de cinco meses de 1971 reuniram milhares de pessoas no pátio e nos jardins dando asas à imaginação e criando a partir de materiais postos à sua disposição – tecidos, fios, papel, terra – ou mesmo apenas aproveitando a oportunidade de criar, como no caso dos domingos de som e o do corpo.
Em 1974 Walther Moreira Salles renunciou ao mandato de presidente. As justificativas para o Conselho Deliberativo não fogem à praxe – exigências profissionais e a sensação de dever cumprido. Estava certo. Após seis anos, as finanças estavam saneadas e o museu dispunha de reservas. Consolidara-se como o principal centro de arte contemporânea do país, mantendo-se como polo importante da arte moderna consagrada. Os cursos, oficinas, ateliês e cinemateca cresceram, aumentando o público e formando profissionais e artistas. E ao longo de todo o período de repressão policial o MAM-RJ foi relativamente preservado, sugerindo uma intensa e subterrânea negociação entre seus dirigentes e os chamados poderes constituídos.
Quase meio século passado, pode-se dizer que nos seis anos da gestão de Walther Moreira Salles o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro viveu seu auge. Isso se deveu às circunstâncias globais do campo das artes e à presença e atuação dos artistas e colaboradores reunidos naquele lugar e naquele momento. A despeito das tendências reacionárias imperantes, a ebulição criativa só conseguiu se manifestar de forma incessante graças a uma administração empenhada em preservar os princípios da instituição e a criatividade das pessoas que a faziam.
Este comentário parte da documentação existente no Arquivo Walther Moreira Salles do IMS. No entanto, para sua contextualização, foram utilizadas algumas obras:
GOGAN, JESSICA, MORAIS, FREDERICO. Domingos da Criação: Uma Coleção Poética do Experimental em Arte e Educação, Rio de Janeiro, Instituto Mesa, 2017
LOPES, FERNANDA. Arte Experimental, São Paulo, Prestígio Editorial, 2013
ZILIO, MARIA DEL CARMEN. Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1999
MORAIS, FREDERICO. Cronologia das Artes Plásticas no Rio de Janeiro, 1816/1994, Rio de Janeiro, Topbooks, 1994
De inestimável ajuda foram as entrevistas que realizamos, com Frederico Morais, Cildo Meireles, Marcilio Marques Moreira e José Carlos Simões.
Somos imensamente gratos à professora Gloria Ferreira, grande conhecedora do tema, por sua generosa colaboração.
Equipe do Acervo Walther Moreira Salles
Sergio Goes, coordenador
Maria Silvia Gomes, pesquisadora