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Contraste

AUDIOdescrição

Walter Firmo

no verbo do silêncio a síntese do grito

08 Madame Satã

Audiodescrição: A fotografia colorida, retangular na vertical, intitulada Madame Satã (João Francisco dos Santos), de 1976, mede 83 cm de comprimento por 123 cm de altura e está na parede com moldura fina, de madeira escura. Retrata de corpo inteiro, João Francisco, um artista LGBTQIAP+, notório ícone da boemia carioca, passando por uma porta azul de enrolar, com abertura no meio. Ele é um homem negro, magro e alto, de cabelos grisalhos, olhos pequenos e penetrantes, que, segundo Walter Firmo, são olhos de faca afiada. Usa chapéu-panamá, de palha fina, branco, com faixa preta em volta da copa, inclinado na cabeça, camisa de mangas longas, listrada na vertical de rosa e preto, calça jeans boca de sino e sapatos marrons. Ele está com o corpo ligeiramente inclinado, olhando para a frente, abaixando-se para passar pelo meio da porta, com a perna direita no ar, a mão direita sobre a coxa, passando sobre a soleira da porta. Madame Satã, nome de sua fantasia no bloco Caçador de Veados, trabalhou como segurança, garçom, cozinheiro, e passou 27 dos seus 76 anos preso por inúmeros delitos, como homicídios, furtos, agressões, dentre outros, em inúmeras idas e vindas para instituições prisionais. Como artista teatral, passou a realizar imitações de Carmen Miranda e apresentações como transformista, sendo um dos símbolos nacionais da cultura drag.

Ouça agora o depoimento de Walter Firmo sobre esta obra e, em seguida, o texto de parede sobre o núcleo Retratos.

Meu diretor de redação, que era o Zuenir Ventura, né?, ou o homem das letras hoje, né?, na Academia Brasileira, ele disse: "Walter Firmo, tenho um trabalho aqui pertinho ali, dá uns 200, 300 metros, um homem te esperando. Esse homem nada mais é, nada mais, nada menos que o Madame Satã." Eu já sabia que existia o Madame Satã na Lapa, dos idos das décadas de 50, enfim. E chegando lá vi aqueles olhos instigantes sobre mim. Ele tinha uns olhos matreiros, uns olhos... eu não quero dizer assassinos, mas uns olhos, assim, de faca afiada, entende? E... tinha um chapéu sobre a cabeça, né? E aí eu idealizei fazer essa foto dele, passando um portal. Não me perguntem por que, mas ele estava retomando a sua vida então... E eu que gosto de escrever, enfim... imaginei ele na sua nova vida, saindo de uma porta e na liberdade da rua.

É a autoridade da visão que cria a irrealidade. A fotografia de Walter Firmo, pelo contrário, projeta realidades possíveis, destinos possíveis para cada um de nós. Talvez por isso seus retratos tenham se tornado clássicos. Clementina, Pixinguinha, Dona Ivone Lara, Cartola, Candeia, Ismael Silva, são, em seus dizeres, “ícones do povo”. A noção de “ícone” vem do campo religioso. São imagens de adoração, que, como destaca Nicole Fleetwood, não são “apenas uma representação do sagrado, mas elas mesmas um modo de oração”. Para a autora, os ícones negros, que na cultura popular são as celebridades com poder de permanência no circuito cultural, fazem “parte da produção e da circulação de uma narrativa racial” sempre em disputa.

Se, numa sociedade racista, a norma é o ódio e o auto-ódio, como nos mostram os trabalhos de autores como bell hooks, Frantz Fanon e Virgínia Bicudo, amar a negritude compreende um percurso necessário de cura. Não é à toa que Firmo define a cor em seu trabalho em termos de amorosidade, voltada diretamente para o povo preto, mas também para os outros sujeitos que elegeu fotografar.

Certamente ter as primeiras lições de fotografia em casa, com seu pai, José, um homem negro amazônico cosmopolita, teve um impacto profundo nas tentativas de autoinscrição de Walter Firmo. Talvez ali tenha brotado também uma lição dessa amorosidade reivindicada por ele e por autoras negras como bell hooks.

Vamos conhecer a próxima obra com audiodescrição: Pixinguinha, que tem um totem na frente com a reprodução tátil. O QR code encontra-se à direita da reprodução tátil.