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Contraste

Instante zero do golpe

por Alfredo Ribeiro, com vídeos de Laura Liuzzi

Claro que, no final da história, quem validou o gol de placa de Evandro Teixeira no Jornal do Brasil do dia seguinte ao golpe militar de 1964 foram os editores – Alberto Dines pilotando a redação – que abriram em cinco colunas no alto da primeira página a cena cinematográfica da tomada do Forte de Copacabana captada pela Leica M3 do fotojornalista. Mas quem botou Evandro Teixeira na cara do gol contra a ditadura foi um certo capitão Leno.

Convidado pelo site do IMS para relembrar o dia em que fez o clique zero do golpe, Evandro Teixeira reconstituiu a madrugada de chuva torrencial em que o militar bateu à sua porta no apartamento da Rua Júlio de Castilhos, no Posto 6.


Tomada do Forte de Copacabana, foto de Evandro Teixeira/Jornal do Brasil

Pausa para entender a relação: o fotógrafo e o capitão faziam parte de um grupo de vizinhos que dividia quadra de vôlei na praia e boemia nas calçadas do canto oposto ao Leme, em Copacabana. Tinha também um médico, um advogado, um piloto da Varig, um oficial da marinha...

Mas foi Leno, capitão do Exército já desencantado com a caserna, o parceiro que tirou Evandro da cama na madrugada daquele 1º de abril com um passe preciso para uma boa reportagem: “Estourou o golpe, estão tomando o forte de Copacabana. Vou pra lá, topa vir comigo? Pega sua câmera!”

A foto síntese dessa história está exposta em Conflitos: fotografia e violência política no Brasil 1989-1964, em cartaz no IMS Paulista. Evandro Teixeira, 81 anos, único ainda vivo entre tantos autores reunidos na grande galeria do IMS na casa do alto da Gávea, descreve assim os fatos entre a surpresa do despertar pelo capitão Leno e a confirmação pelo editor-chefe do Jornal do Brasil de que tinha em mãos um flagrante histórico:

Evandro Teixeira tinha na época 28 anos, era o caçula da turma da praia que o aproximou do capitão Leno. Curtia com seus novos amigos de infância a melhoria de vida que o emprego no JB lhe proporcionou.  Ganhava 4.500 cruzeiros – repórteres do jornal tinham um salário médio de 4 mil – e foi com essa grana que ele conseguiu se mudar para o apartamento da Júlio de Castilhos, onde morava sozinho. Um paraíso comparado com o quarto no centro da cidade, que alugava de uma vedete para dividir com um policial que conheceu pouco depois de chegar ao Rio, em 1957.

Os primeiros tempos na então Capital Federal não foram fáceis. Antes disso, também não. Baiano de Irajuba, vilarejo a 78 quilômetros de Jequié, Evandro se aproximou pela primeira vez da fotografia através de um curso por correspondência com o “professor” José Medeiros, já estrela do escrete de fotojornalistas da revista O Cruzeiro. Teve aulas práticas com um profissional de jornal de Jequié, estagiou no Diário de Notícias da Bahia, mas foi um amigo boêmio, compositor e dentista de Salvador que lhe fez a cabeça para vir tentar a sorte como fotojornalista no Rio.

Manoel Pinto, mais conhecido como Mapin, tinha conhecidos nos Diários Associados, e foi com uma carta de recomendação dele, além da cara e da coragem próprias, que Evandro desembarcou de um avião da Lóide Aéreo Nacional no Santos Dumont, seguindo direto para o arranha-céu onde funcionavam duas redações do grupo de mídia de Assis Chateaubriand, alguns muitos andares abaixo  da Rádio Nacional, a 200 metros do cais do porto do Rio. Sua primeira lembrança da cidade grande é a Pedra do Sal, marco do samba e da cultura negra, vizinha à Praça Mauá. O prédio, a praça, a pedra e o culto ao samba continuam no mesmo lugar, mas Evandro ficou por lá, trabalhando para o Diário da Noite, só o tempo necessário para ser visto pelo mercado.

Depois de um começo quase desastroso como fotógrafo de casamentos – a imprensa brasileira mantinha colunas do gênero e, resumindo, Evandro fez tudo errado logo na primeira ronda pelos altares da cidade –, uma nova chance foi para o vinagre na cobertura do Baile de Gala do Teatro Municipal. O “foca” do Diário da Noite, que chegou a ter uma tiragem de 200 mil exemplares, não conseguiu sequer se aproximar da passarela onde desfilariam Clóvis Bornay e Evandro Castro Lima com suas fantasias de luxo. Para sorte do “Baiano”, apelido que pegou de cara na redação, no dia seguinte suas imagens da evolução das grandes escolas de samba na Avenida Rio Branco lhe valeram o emprego.

Passou a ganhar, além de o suficiente para rachar um quarto para dormir, reconhecimento no mercado. Quem é esse cara? O Jornal do Brasil passou a assediá-lo, mas ele sinceramente achava que ainda não estava pronto para trabalhar naquele santuário. “Eu tinha medo!” Medo de disputar espaço com fotógrafos como Alberto Ferreira e Ronaldo Theobald, além de escritores do quilate de Carlos Drummond de Andrade, Otto Lara Resende e Antonio Callado.

Ficou no Diário da Noite até 1962, passou mais um tempo se preparando na revista semanal Mundo Ilustrado, até que “tomei coragem e fui”. Seguiu mais ou menos o rastro de Alberto Dines, que, também em 1962, trocou a direção do tabloide vespertino do Chatô pelo cargo de editor-chefe da lendária redação do JB que funcionava na Avenida Rio Branco. Evandro não lembra ao certo se foi atrás do Dines no final de 1962 ou no início de 1963, mas o certo é que começava ali uma relação de 47 anos, tempo que trabalhou na empresa dos Nascimento Brito, e de onde saiu em 2010, quando a versão impressa da grife deixou de circular. A história do Jornal do Brasil que sobrou tem registros memoráveis nas imagens de Evandro Teixeira.

Antes mesmo da foto consagradora da tomada do Forte de Copacabana, a tal exposta na última sala de Conflitos: fotografia e violência política no Brasil 1989-1964, Evandro já tinha se apresentado ao leitor exigente do JB em coberturas como a dos Jogos Pan-Americanos de São Paulo e do grande incêndio do Edifício Astória, vizinho ao hotel Serrador, no centro do Rio. Mas nada comparável à carga de adrenalina profissional que experimentou naquele 1º de abril em que o capitão Leno bateu à sua porta com o furo do golpe militar.

Câmera escondida entre o sovaco e a jaqueta, velocidade baixíssima, instinto fotográfico, coragem e sorte renderam o primeiro flagrante cinematográfico do golpe de 1964. O feito era tão impressionante que não chegou a ser narrado até o fim quando, de volta para casa, Evandro ligou para Alberto Dines, comunicando o que tinha registrado no Forte de Copacabana. “Vá já para a redação!” – foi interrompido pela ordem do editor-chefe. Detalhes técnicos que na época não importavam, hoje dão nova perspectiva à história que as imagens contam:

Trata-se de um leicaniano empedernido. Tem seis câmeras Leica no acervo: uma ‘R’ banhada a ouro, a inseparável M3, fora uma M2, outra M4, uma M6 e, por fim, uma V-Lux 4 digital. Fala da marca óptica alemã como se fosse ente familiar, tal qual as filhas Carina e Adryana, mães de Nina e Manoela, Carina, netas de dona Marly, casada com Evandro há 53anos. Às vésperas de completar 82 anos de nascimento, o velho baiano reconhece em sua história a trajetória de um cabra que deu sorte. E não só na vida pessoal.

“Fotografia é um conjunto de fatores: tem que ter um olho bom, experiência, conhecimento, técnica e, fundamentalmente, sorte.” Coisa que nunca lhe faltou. “A queda da moto”, um clássico do fotógrafo, imagem símbolo da instabilidade do poder militar, parece piada sob a perspectiva de seu making of. O batedor da FAB que se estabacou no asfalto do Aterro do Flamengo tentava “se mostrar” para o fotógrafo que conhecia de tanto trabalharem, cada um em sua função, nas mesmas cerimônias oficiais. “Ele fazia piruetas deixando-se ultrapassar pelo carro de reportagem do JB que seguia uma comitiva.” Prevendo que o sujeito repetiria as manobras exibicionistas ao retomar seu lugar na carreata, Evandro botou meio corpo para fora da Rural Willys do jornal e, de câmera em punho (a Leica M3 de sempre, com lente 90mm), esperou a volta do motociclista em zigue-zague para disparar um único clique simultâneo, por obra do acaso, ao exato instante da derrapagem que manteve apenas a máquina em perfeito equilíbrio.


Queda da moto, foto de Evandro Teixeira/Jornal do Brasil

“Libélulas e baionetas”, outra de suas imagens icônicas da resistência à ditadura, é resultado mais de olhar apurado – o próprio e o do editor – que de sorte. Em 1968, saindo de uma cerimônia militar com a presença de Costa e Silva, enfado fartamente documentado por ele e todos os “coleguinhas” presentes, Evandro bateu o olho e quatro ou cinco chapas do balé das mariposas na ponta das armas perfiladas para receber o marechal. No dia seguinte a metáfora do flagrante inusitado escancarada na primeira página do JB, chamando para um registro seco no miolo do jornal sobre a participação do “presidente” no evento da véspera, rendeu ao fotógrafo uma descompostura tête-à-tête com o próprio Costa e Silva, seguida de uma noite de detenção.

Sorte, olhar apurado, técnica e faro de caçador de notícias de um fotojornalista à moda antiga, tudo, enfim, que consagrava os craques da profissão naqueles tempos nada fáceis para a imprensa está impregnado no flagrante da tomada do forte de Copacabana, pedra fundamental de um conflito que se arrastou por mais de 20 anos da história do Brasil. Evandro Teixeira sempre aparecia nessas horas em que o quadro estava pronto para ele mandar o dedo. Parece mesmo ter o dedo de Deus em alguns de seus cliques, mas o fato de ele ter nascido no dia 25 de dezembro é, decerto, mera coincidência.


Libélulas e baionetas, foto de Evandro Teixeira/Jornal do Brasil

  • Alfredo Ribeiro é coordenador de internet do IMS. Laura Liuzzi integra o Núcleo de Vídeo do instituto.