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Contraste

Guerra de gigantes

Mànya Millen

Em junho de 1961, Flávio da Silva, um menino franzino de 12 anos, adoentado, morando em condições precárias com os pais e oito irmãos mais novos (e um nono a caminho) na Favela da Catacumba, localizada na Lagoa Rodrigo de Freitas, endereço nobre do Rio de Janeiro, comoveu o mundo com sua história de privações e descaso estampada de forma sensacionalista na capa da revista americana Life. A reportagem mexeu com os brios verde-amarelos. Em outubro, a brasileira O Cruzeiro tomou as dores da ferida aberta na imagem internacional do país e deu o troco, publicando de maneira igualmente sensacionalista o drama de uma outra família, formada por imigrantes porto-riquenhos, os Gonzalez, vivendo numa área degradada de Nova York, a pouca distância do poderoso centro financeiro de Wall Street. Foi uma briga de gigantes, embalada por editoriais virulentos e acusações mútuas de manipulação de conteúdo, um episódio que o público poderá relembrar a partir do dia 20 de fevereiro na exposição O Caso Flávio – O Cruzeiro x Life: Gordon Parks no Rio de Janeiro e Henri Ballot em Nova York, que ocupará a Pequena Galeria do IMS Rio.

Organizada pelo Instituto Moreira Salles em conjunto com a Gordon Parks Foundation (Nova York), o Ryerson Image Centre (Toronto, Canadá) e o J. Paul Getty Museum (Los Angeles), a mostra é composta por 15 fotos de Gordon Parks, um dos grandes nomes da fotografia americana, que registrou aqui a família Da Silva, e 15 do brasileiro Henri Ballot, que achou por lá a família Gonzalez, e cujo acervo pertence ao IMS. Além das fotografias, estarão expostas ainda fac-símiles das duas revistas com as respectivas reportagens –  o material da Cruzeiro era tão propositalmente calcado no da Life que até a diagramação foi copiada – e o diário original feito por Ballot nos EUA, formando um conjunto que ajuda a dimensionar o tamanho do embate.

A contenda germinou num terreno minado. De um lado, uma grande publicação americana com um projeto editorial casado com a política da Aliança para o Progresso dos EUA, que naquele momento tentavam afugentar o fantasma do comunismo na América Latina. Em plena Guerra Fria, a ameaça socialista estava bem ali ao lado, representada pelo poder e pelo carisma do líder cubano Fidel Castro, e o governo alertava para o perigo do crescimento da esquerda na região, alimentado pela pobreza do povo. Do outro lado estava uma grande revista de circulação nacional, com muitos problemas financeiros, em busca de um assunto que atraísse leitores num país com problemas também políticos (entre a publicação da Life e a réplica da Cruzeiro houve a renúncia de Jânio Quadros e a complicada subida ao poder do vice João Goulart). Para piorar, o disparo atingiu justamente uma metrópole com o orgulho já arranhado: no ano anterior o Rio deixara de ser capital federal, cedendo lugar à recém-construída Brasília, e via agora sua face mais feia escancarada para o mundo.

Gordon Parks. Começa o dia da família. Rio de Janeiro, 1961 (Com permissão da Fundação Gordon Parks)

Por isso, como aponta Sergio Burgi, coordenador de Fotografia do IMS, e um dos curadores da mostra – junto com Amanda Maddox, do J. Paul Getty Museum, e de Paul Roth, do Ryerson Image Centre –, O Caso Flávio pode ser usado para refletir sobre diversos e importantes ângulos, entre eles a objetividade e a manipulação da informação. “Toda a relação com a comunicação visual de massa, passando pela questão ideológica, da manipulação editorial está presente nesse caso”, diz ele, para quem a disputa ainda embaçou o que seria o principal ponto das reportagens: a denúncia da miséria. “Tudo acabou virando uma discussão sobre manipulação, imagem, verdade. Passa a ser um desserviço inclusive para a própria questão da objetividade da informação, porque por mais que a fotografia seja potencialmente ambígua, não é um conteúdo desprovido de objetividade. Nesse caso, quando se observa apenas as imagens feitas pelos dois fotógrafos, ambas carregam em si muita informação direta, clara, sobre duas situações sociais semelhantes em cidades distintas”.

Burgi assinala que tanto o celebrado jornalista, cineasta, poeta e músico Gordon Parks (1912-2006), militante pelos direitos civis e contra a segregação racial – foi o primeiro fotógrafo negro da Life – quanto Henri Ballot (1921-1997), que já fizera para a Cruzeiro reportagens históricas como acompanhar os primeiros contatos dos irmãos Villas-Bôas com tribos indígenas no Xingu, de 1952 a 1957, mostraram um real engajamento e envolvimento com seus trabalhos. Ballot integrava uma nova geração de fotojornalistas da Cruzeiro, ao lado de nomes como Luciano Carneiro e José Medeiros, com uma formação mais humanista, e comprometidos “com um olhar objetivo e documental”, como descreve Burgi.

Parks ficou sinceramente comovido com a situação de Flávio, ajudou o menino e sua família, e permaneceu em contato com ele durante muitos anos, visitando o Brasil algumas vezes. O último encontro dos dois aconteceu em 1999, no Rio. Desde o início a história de Flávio marcou profundamente a vida de Parks, e é lembrada como uma de suas principais reportagens. Fez dela um pequeno documentário e também um livro, publicado em 1978, que está sendo reeditado pela editora alemã Steidl e pela fundação Gordon Parks em versão ampliada, reunindo textos diversos, entre eles os dos curadores. As fotos de Parks que estão no IMS Rio integram a mostra The Flavio Story, que será exibida no J. Paul Getty Museum a partir de julho, e no Ryerson Image Centre em setembro. O foco é a reportagem original de Parks, mas a exposição agregará também algumas imagens do fotógrafo brasileiro.

Henri Ballot. Família de Ely-Samuel Gonzalvez na rua Rivington, no Bowery, Nova York, 1961 (Acervo IMS)
Henri Ballot. Família de Ely-Samuel Gonzalvez na rua Rivington, no Bowery. Nova York, 1961 (Acervo IMS)

Burgi também lembra que quando Ballot vai a Nova York para encontrar uma família como a de Flávio, lança, nessa procura, um olhar sensível sobre a pobreza nas ruas da metrópole. “Ele parece encarar de frente essa questão, fotografa a população de rua, as áreas degradadas, e é muito interessante, tem um peso. Isso num período anterior a fotógrafos como Bruce Davison, por exemplo, que fez o mesmo na Rua 100, no Harlem”. Parks e Ballot, porém, estavam a serviço de duas revistas com propósitos bem distintos na época. O sensacionalismo exercitado pelas publicações transformou uma triste realidade em peça de divulgação e marketing.

Considerado o mais importante fotógrafo negro dos Estados Unidos, Parks veio ao Brasil com a missão de fazer, para a Life, uma das três matérias de uma série mais ampla sobre pobreza na América Latina. O que Parks encontrou na Catacumba, favela que seria removida da paisagem nobre da cidade, como tantas outras, no final dos anos 1960, empurrando a população pobre para as periferias com pouca ou nenhuma infraestrutura, como ainda é hoje, foi perfeito para a revista e para os EUA. O garoto subnutrido de origem nordestina, com uma asma que lhe tirava as forças para cuidar dos irmãos menores enquanto os pais tentavam arrumar algum trabalho, era o personagem ideal para ilustrar a tragédia da fome.

A reportagem com fotos e texto de Parks foi publicada em 16 de junho de 1961 pela revista americana, que anunciava: “O terrível inimigo da liberdade: a pobreza – Parte II da série da Life sobre a América Latina. Uma família vive em desespero numa favela do Rio. Fotografias da Life por Gordon Parks acompanhadas por seu emocionante diário pessoal”. Todo o material era replicado nas edições internacional e latino-americana da revista, o que também causou particular incômodo ao Cruzeiro, que ainda mantinha, a muito custo, uma versão em espanhol para a região.

Páginas da edição da Life de 16 de junho de 1961

Ocupando uma página inteira, a foto de Flávio extremamente magro, com uma expressão de dor e cansaço, deitado numa cama no barraco, ficou famosa. Ainda mais por ser publicada ao lado de outra foto impactante, no mesmo tamanho: o corpo de uma vizinha envolto num lençol, sendo velado numa cama de outro barraco, fazia uma ligação direta com um futuro sombrio. A imagem desencadeou uma onda de solidariedade nos EUA, com doações em dinheiro para o menino e sua família chegando à Life, que criou um fundo apenas para gerir o valor. A quantia arrecadada na época ajudou a garantir uma casa decente para a família Da Silva em Guadalupe – onde Flávio ainda mora com a mulher, filhos e outros parentes –, além de proporcionar algumas melhorias na própria Favela da Catacumba. Preocupado com o menino, Parks voltou ao Brasil pouco depois e levou-o para se tratar nos EUA, já que sua doença, aliada à pobreza, poderia lhe custar a vida em pouco tempo, como atestou na ocasião o médico do posto de saúde ao qual o menino foi levado pelo fotógrafo, ainda no Rio.

A ida de Flávio para o exterior foi amplamente divulgada pela Life e teve grande repercussão nos jornais brasileiros, que acompanharam o caso de perto. Em 21 de julho, mais um golpe mortal da publicação americana. A capa exibia uma foto do menino sorridente, com aspecto saudável e visivelmente bem-disposto numa cama do hospital em Denver, Colorado, onde ele morou por dois anos com uma família portuguesa enquanto se tratava. A manchete que acompanhava a imagem era “O resgate de Flávio: americanos o trazem da favela do Rio para ser curado”. Entre exaltações à generosidade e compaixão do povo americano, mais notícias e fotos da casa nova da família Da Silva, mostrando o quanto a vida deles mudara para muito melhor.

Páginas da edição da Life de 21 de julho de 1961

A Cruzeiro comprou a briga e preparou a revanche, convocando o talento de Henri Ballot, que nasceu no Brasil, filho de mãe brasileira e pai francês, foi morar na França aos dois anos e retornou ao país logo após a Segunda Guerra, na qual chegou a combater como piloto de avião, uma de suas paixões. Sua vida como fotógrafo foi relativamente curta, entre 1949 e 1968, período em que trabalhou para O Cruzeiro – a produção de aproximadamente 13 mil fotos feitas para a revista está no acervo do IMS –, tornando-se um de seus principais nomes.  A missão de Ballot era achar, numa metrópole em território americano que fosse tão celebrada quanto o Rio, o mesmo cenário de miséria.

Na rua Rivington, no Lower East Side de Manhattan, muito próximo de Wall Street, Ballot encontrou um enclave de porto-riquenhos e, nele, os oito Gonzalez, que se amontoavam num pequeno apartamento cercado por áreas de lixo, ratos, percevejos, baratas. Um dos filhos do casal, Ely-Samuel, de nove anos, era quase uma contrapartida de Flávio, embora o conjunto de fotos de Ballot não tivesse, por muitos motivos, a mesma contundência do de Parks. Acompanhando as imagens, um diário do repórter-fotógrafo, nos moldes daquele publicado pelo americano.

A reportagem da Cruzeiro, publicada em 7 de outubro de 1961, foi chamada com destaque na capa da revista, que ali não usou, contudo, uma foto dela: “O repórter Henri Ballot descobre em N.York um novo recorde americano: MISÉRIA”. Assim, em maiúsculas. Nas páginas internas, um editorial citava as publicações da Life, reconhecia a existência e o drama das favelas cariocas, mas lembrava que “a miséria não é exclusividade nossa”. E, mais que isso, alertava ao leitor que propositalmente a Cruzeiro seguia o mesmo roteiro, os ângulos das imagens e a mesma paginação da revista. “Eles perderam uma grande oportunidade ao optar pelo puro espelhamento da Life, apenas para dizer que tudo aquilo era igual ou pior nos EUA” comenta Burgi. “Se a Cruzeiro tivesse sido um pouco mais inteligente, evitado o viés sensacionalista, feito uma matéria com mais liberdade editorial, pelo que vejo do conjunto do Ballot eles teriam uma matéria de peso, dariam uma resposta mais intelectualizada. Como conjunto, o que Ballot produz em Nova York tem originalidade, mas como cópia não funciona”.

Os brasileiros não se comoveram com a pobreza da família porto-riquenha, e as doações não se repetiram. A imagem que encerrava a reportagem, porém, causaria danos ao Cruzeiro e a Ballot: numa cama, tal qual Flávio, o menino Ely-Samuel é visto adormecido, com três baratas enormes passeando sobre seu corpo magro, e revista e fotógrafo foram imediatamente acusados pela Life de forjar a realidade. A revista Time, do mesmo grupo da Life, publicou um editorial intitulado “A vingança carioca” no qual, em tom irônico, comentava que o Brasil não achara graça em se ver daquela forma, que baratas e outros insetos eram de fato comuns na área fotografada pelo brasileiro, porém afirmava que elas foram postas sobre o menino por Ballot, afirmando ainda que ele comprara os depoimentos dos porto-riquenhos, informação que teria sido checada pela sua equipe de repórteres. Ballot sempre negou o fato com veemência, mas o episódio acabou causando a proibição de sua entrada nos EUA.

Páginas da edição de O Cruzeiro de 7 de outubro de 1961

O fotógrafo da Cruzeiro foi a campo se defender. Voltou à favela da Catacumba e procurou os familiares de Flávio em Guadalupe, publicando em novembro do mesmo ano uma reportagem na qual “desmascara” Parks e a Life a partir dos depoimentos. Segundo ele, as pessoas ouvidas falaram sobre “encenações” e situações que foram deturpadas para justificar a reportagem sobre a favela. A partir daí o imbróglio perdeu força, sem que a revista brasileira respondesse diretamente às acusações da Time sobre a suposta falta de ética de Ballot, como documenta o cientista social e antropólogo Fernando de Tacca, da Unicamp, autor de uma extensa e aprofundada pesquisa sobre O Caso Flávio, com a qual ganhou, em 2010, o Prêmio Marc Ferrez de Fotografia/Funarte. “Pena que esta ainda seja uma história mal trabalhada e mal estudada no Brasil”, comenta Sergio Burgi. “Além de Tacca e da Dorrit Harazim, que escreveu sobre Parks para a revista ZUM,  o episódio foi pouco explorado”.

Entre outras questões que podem ser levantadas a partir do caso Flávio, o coordenador de Fotografia do IMS destaca também que ele, se não inaugura, pelo menos é parte importante da construção de um imaginário do Rio de Janeiro associado às favelas. Em 1959, o diretor francês Marcel Camus levara às telas Orfeu Negro, adaptação da peça Orfeu da Conceição, uma versão do mito grego de Orfeu ambientado numa favela carioca, com um elenco de atores negros, escrita em 1954 por Vinicius de Moraes. O filme de Camus ganhou a Palma de Ouro em Cannes e o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1960.

“A reportagem sobre Flávio e a Catacumba é parte da construção desse imaginário porque sai na Life, é retomada e estendida na Cruzeiro, todos os jornais e as TVs repercutem o caso”, afirma Burgi. “Ao mesmo tempo a favela, nesse período, está associada às remoções, que foram muitas”, abrindo espaço para empreendimentos imobiliários como os prédios de luxo que foram construídos em torno do hoje Parque da Catacumba. Ainda não era, como observa Burgi, um imaginário ligado à violência, como ocorreria alguns anos depois, mas sim uma discussão mais social sobre a miséria, a ausência de tudo. Que o embate editorial entre as duas revistas, volta a lembrar o curador, acaba obscurecendo.

Tudo, porém, acaba apontando, diz ele, para o mesmo “legado permanente”. “E qual é? Não houve uma política de compensação pós-abolição, e não há nenhum nível de investimento em infraestrutura para receber as populações migrantes. A transformação dessas áreas de pretensos projetos de urbanização em áreas de periferia ocupadas pelo crime organizado, como a Cidade de Deus, que recebeu parte da população da Catacumba, permanece”.