Antonio Candido em Poços de Caldas
Escrito a pedido da Academia Poços Caldense de Letras em 2004, de acordo com o que indica o manuscrito no alto da página datilografada (transcrito a seguir), “Vida em Poços” trata da relação de Antonio Candido com a cidade de Poços de Caldas, desde a atuação de seu avô materno na construção do primeiro balneário, até a sua própria vida na cidade para a qual se mudou em função das atividades profissionais de seu pai, o médico Aristides de Mello e Souza, diretor das Thermas Antonio Carlos no período de 1930 a 1934.
“Vida em Poços” traz ainda a lembrança da casa na antiga Rua Sergipe, com sua biblioteca de mais de 5.000 volumes; da livraria Vida Social com sua excelente seleção de livros; dos estudos no Ginásio de Poços de Caldas e, posteriormente, no Ginásio de São João da Boa Vista; da influência de Maria Ovídia Junqueira, que o iniciou no estudo da língua inglesa, e de Teresina Carini Rocchi, que o ensinou sobre a música e cultura italianas. Um exercício de memória, o texto nos remete ao grande afeto de Antonio Candido pela cidade de Poços de Caldas.
Vida em Poços
Antonio Candido
Além de cidadão poçoscaldense honorário, sou ligado à cidade por laços antigos. Meu avô materno, José de Carvalho Tolentino, médico do Rio de Janeiro, foi a partir de 1881 um dos maiores acionistas e por duas vezes diretor da empresa que transformou Poços de Caldas em estância termal no fim do século XIX. Homem enérgico e realizador, atuou de maneira decisiva na construção do primeiro balneário, inaugurado em 1886, assim como na do segundo, denominado “dos Macacos”, cuja inauguração se deu em 1896, Nesse ano a empresa foi extinta e ele voltou para o Rio, morrendo prematuramente em 1898 aos 47 anos. Sem contar as estadias em caráter individual, morou em Poços com a família durante os dois períodos de direção: de 1885 a 1886 na atual Rua São Paulo, ao lado da igreja de Santo Antonio; de 1891 a 1896 na atual Rua Padre Henri Mothon, onde nasceram duas de suas filhas, uma das quais minha mãe, em solteira Clarisse de Carvalho Tolentino.
Por uma recorrência curiosa, trinta anos mais tarde, tendo o governo de Minas decidido explorar diretamente os serviços termais e confiado a transformação da cidade a Carlos Pinheiro Chagas, professor de Anatomia Patológica da Universidade de Minas Gerais, meu pai, Aristides de Mello e Souza, médico, foi convidado a dirigir os ditos serviços, o que o levou a fazer de certo modo na esfera pública o que fizera o sogro na esfera privada. Contratado em 1928, passou um ano na Europa com a família por força do contrato, especializando-se em Crenologia, Fisioterapia e Reumatologia. Chegou a Poços em janeiro de 1930 e dirigiu a fase final da construção e a instalação das novas Termas, inauguradas em março de 1931. Ele as dirigiu até 1934 como diretor e até 1936 como “médico da estância hidromineral” com encargos apenas técnicos. Nessa segunda fase voltou à clínica particular, falecendo aos 56 anos em 1942.
Viúva, minha mãe conservou a nossa casa, situada na antiga rua Sergipe, atual Capitão Afonso Junqueira, esquina da Rio Grande do Norte, e nela passava longas temporadas até sua morte em 1961. Nós, filhos, continuamos a frequentar a residência, vendida em 1989 depois de ter abrigado a família por quase sessenta anos. Pessoalmente, sempre a considerei uma espécie de sede, um lar alternativo que frequentei assiduamente enquanto nos pertenceu; às vezes, todos os fins de semana. Nela passávamos as férias e nela tínhamos uma biblioteca com mais de 5.000 volumes, sem contar os de medicina, doados em 1960 por minha mãe à Faculdade de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Depois que ela morreu, doamos em sua memória cerca de 800, muitos dos quais lhe haviam pertencido, à Faculdade de Filosofia de Poços de Caldas, atualmente vinculada à Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Quando vendemos a casa doamos mais de 3.500 à Biblioteca Central da Universidade Estadual de Campinas, onde formaram a coleção especial “Aristides Candido de Mello e Souza”, nome completo do meu pai.
Meus dois irmãos e eu nascemos no Rio de Janeiro, mas vivemos desde a primeira infância em Cássia, no Sudoeste de Minas, cidade que é a terra natal de meu pai e eu considero também a minha, pois fui para lá com oito meses e lá vivi até irmos para a Europa em 1928. Por isso costumo dizer que sou mineiro nascido no Rio.
Nossos pais eram cultos e muito dedicados à nossa formação mental. Meu pai tinha o hábito de nos ler depois do jantar trechos de histórias e literatura, explicando-os de acordo com a nossa idade. Nascemos e crescemos entre livros, e Poços contribuiu de maneira ponderável neste setor, porque tinha uma livraria excelente, estabelecida no decênio de 1920 por Ugo Scalabrino, italiano que viveu alguns anos na cidade, onde fundou em 1925 um jornal anti-fascista na sua língua: Il Dovere. Antes de 1930 vendeu a Agência Scalabrino (como se denominava) a Cornélio Tavares Hovelaque, educador, advogado e jornalista que lhe mudou o nome para Vida Social, o mesmo do jornal que redigia e foi empastelado na Revolução de 1930. O Dr. Hovelaque (autor do tema da cidade – “Terra da saúde e da beleza”) manteve o perfil cosmopolita do estoque, tendo sempre à venda livros em francês e em inglês, além dos nacionais, de modo que a Vida Social foi importante na minha formação, tanto mais quando meu pai não regateava os meios para as nossas aquisições bibliográficas.
Devo também elementos formadores ao Ginásio Municipal de Poços de Caldas, infelizmente para nós cedido aos Irmãos Maristas em 1934 quando eu estava no 4º ano ginasial, o que nos deixou bruscamente sem escola, pois eles não admitiam alunos além do 1º ano, a fim de podê-los conformar mais facilmente à sua orientação. Fui então fazer o 5º ano no Ginásio Estadual de São João da Boa Vista, onde tive um professor excepcional, que me revelou novas perspectivas de cultura: Joaquim José de Oliveira Neto. No de Poços, que em 1931 e 32 teve “orientação técnica” do Mackenzie College de São Paulo, tive pelo menos dois mestres aos quais devo muito. Primeiro, o de português, Edmundo Gouvêa Cardillo, grande conhecedor da língua e excelente didata, autor mais tarde de livros interessantes sobre temas espiritualistas, professor atento ao progresso dos alunos, cujos trabalhos escritos devolvia com longos comentários em tinta vermelha. Influência ainda maior foi a de Dona Maria Ovídia Junqueira, patrona de minha cadeira na Academia Poçoscaldense. Viúva do Capitão Afonso Junqueira, era natural de Caldas, tinha formação sólida e grande cultura. Fui seu aluno num curso de admissão no qual dava todas as matérias com grande eficiência, e devo-lhe a iniciação no universo cultural de língua inglesa, que nos ensinou durante quatro anos do ginásio. Com solicitude maternal, franqueou-me a sua biblioteca, sugeriu-me leituras e me incentivou de vários modos. Foi sempre amiga de nossa família e morreu no mesmo ano que minha mãe.
Por falar em Academia: no Ginásio Municipal formamos um grupo estimulante de colegas, um dos quais, José Bonifácio de Andrada e Silva, neto de Pedro Sanches de Lemos pela mãe, teve em 1934 a ideia de criar um jornal e uma associação literária. O jornal se intitulou Ariel, durou dois números e nele publiquei o meu primeiro artigo, sobre um tema de história alemã. A associação foi a Academia Ginasiana de Letras, com dez membros, cadeiras providas de patronos, discursos de posse e tudo o mais... Mas a duração foi curta. Um dos “acadêmicos” publicou certo artigo sobre os males históricos da propriedade privada, que pareceu subversivo a um “confrade” integralista e ao diretor do ginásio, simpatizante do integralismo (era tempo de prosperidade para o fascismo nacional). Houve uma sessão agitada na Academia e, em solidariedade ao articulista, quatro membros, inclusive eu, saíram dela e do jornal, seguindo-se o fim de ambos. (Entre parênteses: ainda vivem quatro dos dez “acadêmicos” de 1934: em Poços, Resk Frayha, engenheiro; em São Paulo, João Paulo de Lacerda Dias, engenheiro; Spartaco Vizzoto, médico; e eu).
José Bonifácio e seu irmão mais velho Antonio Carlos, ambos nascidos em Poços, mudaram para a cidade em 1933 depois da morte prematura do pai e trouxeram a sua experiência de rapazes de cidade grande, contando coisas sobre literatura e política em São Paulo, dando notícia de vultos e fatos. Eles me fizeram ler livros reveladores, como o então recente Casa grande e senzala, de Gilberto Freyre, e a História do socialismo e das lutas sociais, de Max Beer, que me puxou para a esquerda, tendência que era a deles e também de uma grande amiga de Dona Maria Ovídia e de minha mãe, Dona Teresina Carini Rocchi, personagem singular sobre quem escrevi um ensaio. Era apaixonada pela justiça social e a causa operária, antifascista intransigente num tempo em que Mussolini era muito cotado aqui, dentro e fora da colônia italiana. Ela teve sempre por mim um grande afeto e me ensinou muita coisa de música e da cultura de seu país.
A nossa casa, em centro de jardim, voltada para o pátio interno, era afastada das áreas de maior prestígio e agitação, o que favorecia o recolhimento, propício à vida do espírito. Assim, nas minhas estadias, pude ler e escrever em condições ideais até quase setenta anos. E a qualquer momento, era só sair e encontrar alguns bons amigos, que sempre tive na cidade. É portanto com fundamento que me considero alguém visceralmente ligado a ela, com raízes profundas nos anos remotos de 1880.
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