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Leituras do acervo

Atores convidados leem obras do acervo do IMS.


Euler Santi

Poços de Caldas

Ator, diretor e dramaturgo. Começou sua carreira no ano 2000 em São Paulo, com trabalhos em teatro, TV, cinema e publicidade. Nasceu em Ribeirão Preto, mas prefere se esconder na montanha, em meio ao mato da Serra da Mantiqueira, entre Poços de Caldas (MG) e Águas da Prata (SP).

Jurandir, Profundo
Jurandir Ferreira

Disseram-lhe que os homens não eram senão macacos modificados. E para aperfeiçoar-se era bastante instituir a vontade em um sistema de forças disciplinadoras. Aprendera assim a acreditar num livre-arbítrio capaz de conduzir o indivíduo a superar-se e a penetrar num plano considerado impossível, ou pelo menos a ultrapassar o nível das massas. Bastava ser um macaco de bem e nenhum homem, por mais semelhança que tivesse com um macaco, não seria melhor. A gente não deve ceder à inspiração dos maus conselhos e desvairar-se em manias de ser o que não é. (História de Macaco)

Estava eu nos meus quatro anos de idade e inaugurava minha primeira aventura turística sobre o perfil desses finos horizontes. Nesta altura da vida os valores do mundo psicológico e do mundo físico ainda se encontram de cabeça para baixo, em posição fetal, e se representam por imagens de sonho. Tão longe agora andava eu no tempo e no espaço que de repente meus olhos encontraram a maior das maravilhas. Uma cidade tal qual me mostravam as histórias para meninos nas páginas de O Tico-Tico, um semanário bem ilustrado, de histórias para crianças, então em voga. Era preciso viajar para ver uma cidade murada como aquela. E, mais que empolgado pela visão, gritei, apontando da janelinha do trem o meu dedo descobridor: “Uma cidade!”. Porém logo minha tia Afonsina converteu o fantástico descobrimento em termos de realidade: “Não, filho. Aquilo é o cemitério!”. Então não descobri mais nada e a viagem aventurosa findou naquele instante para a primeira lição sobre o que era um lugar entre muros para onde vão os defuntos. Assim tem sido a minha velha poesia do cotidiano, uma confusão de cemitérios com cidades e de cidades com cemitérios. Uma desolada e longa sucessão de enganos, uma triste poesia de menino que não aprendeu a ver as coisas. E, com tudo isso, ainda raramente usa óculos. (A Viagem)

Não sou contra abrigos rústicos, bares, televisão, mirantes e outros regalos que possam ilustrar nossos pontos de passeio e aliviar um pouco as velhas tristezas do homem diante de sua morte ou diminuir novas apoquentações diante da vida. Não sou contra estradas, caminhos ou trilhos. O que me dá cuidados e no que eu penso é na inocência colossal e indefesa da montanha, na sua enorme tranquilidade, na sua passiva e confiante beleza em cuja carne tal estrada vai inocular em doses mortais o pior e o mais destruidor dos vírus, que é para ela o trânsito das gentes. Da profunda e indomável necessidade de matar que é imanente no homem, a necessidade de matar a natureza é a mais sedutora, a mais facilmente satisfeita, a que produz devastações maiores, mais calamitosas e talvez mais irreparáveis, e a que menos se parece com um crime. (Cabritos na horta)

Meu pequeno mundo vai se degelando aos poucos sob o lívido sol da morte e a cada ano que passa é menor a ilha humana em que flutuo na glacial correnteza do tempo. Não posso ainda gemer como o poeta: "São mortos todos que amei!". Há tantos que ainda amo e ainda vivem. Mas os que me faltam diminuem a luz, a beleza e a dimensão dos meus horizontes. Alguns eram figuras tutelares, materialmente muito próximas. Outros surgiram no correr da vida, acompanharam-me por longos anos, nas paralelas da pauta de surpresas que é o nosso destino. A todos eles me ligavam laços vários, a todos eu devia um pouco da minha própria existência. Deve-se tudo aos outros, não somos nada sem eles. E se morremos imperceptivelmente com a morte de nossos próprios desconhecidos, que dizer quando morre uma dessas criaturas que se haviam tornado em marcos, em exemplos, em impressões constantes no caminho de nossa vida? (O gentil homem Leopoldo Genofre).

Na medida em que se sucedem os anos você se sente como uma árvore, as raízes cada vez mais numerosas, cada vez maiores, cada vez mais agarradas ao chão. Mas como você é menos que uma árvore, porque você é apenas uma consciência e uma inexplicada angústia, você se sente integrado nos próprios elementos da terra natal, cada átomo do seu ser preso a cada átomo de tudo quanto nela existe ou vive. Você a absorveu de tal modo que tudo quanto nela se encontra encontra-se também no seu ser. Você acaba não sabendo onde você e a terra natal se separam, tudo o que acontece nela acontece em você. Quando alguma coisa a atinge e fere, você sofre como se fosse atingido e ferido. Às vezes, quando é a morte que a despoja de suas figuras mais amadas, você também se estorce como se fosse mutilado vivo, como se arrancassem de você pedaços de corpo e alma. (Três mortes em junho)