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Contraste

Leituras do acervo

Atores convidados leem obras do acervo do IMS.

Elenco
André Lu
Euler SantiGama GamaGlaucia LombardiJoice MarinoMarcia do ValleMariah Da Penha


Mariah da Penha

Rio de Janeiro

De Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, é atriz, diretora, produtora e animadora cultural. Tem graduação em Ciências Sociais e História na Fundação Getúlio Vargas. Atuou no Teatro Independente de Nova Iguaçu (TINI), Grupo Dia a Dia e Grupo de Teatro Tá na Rua. Trabalhou em novelas da Rede Globo e em filmes brasileiros.

Encontro
Maria Julieta Drummond de Andrade

Meu amigo terminara uma procelosa relação de (des)amor que o deixara extenuado. Seu jovem coração havia endurecido com o sofrimento e estava mais árido que um deserto. Sentindo-se incapaz de cultivar novos carinhos, concluiu que, na crise em que se debatia, só um animal poderia ajudá-lo. Não indagam, não julgam, não provocam – os bichos são a companhia perfeita e, em seu admirável silêncio, entendem tudo. Pensou num cachorro, desistiu: seu pequeno apartamento sem varanda não oferecia o mínimo de condições de que necessita qualquer cão, por menor que seja. Um gato, então, ou melhor, uma gata. Mas que fosse delicada, racée, altiva e submissa a um tempo – o contrário daquela perversa que o quisera destruir. Decidiu-se por uma siamesa. Foi a várias lojas especializadas e a casas particulares, cujos donos anunciavam pelos jornais possuir gatos de luxo. Em vão: ou não eram puros, ou não havia fêmeas, ou tinham esse ar mofino que os animais cativos, criados artificialmente, adquirem. Ele carecia de uma gata especial, capaz de despertar-lhe novamente o interesse pela coisa viva, fazendo ebulir a chama afetiva quase extinta.

Um dia, à beira do desânimo, soube que, num lugar semipovoado do interior, morava uma senhora húngara, rodeada de siameses. Tomou um ônibus até a capital de Córdoba (oito horas), outro até uma cidadezinha ao norte da província (três horas) e uma charrete até o vilarejo (duas horas). Não lhe foi difícil encontrar a chácara abandonada, bem conhecida pelos poucos habitantes da região, onde uma velha seca, com cara de homem e voz ríspida, o recebeu com desconfiança. O rapaz explicou-lhe a razão da visita, a longa viagem que fizera. A estrangeira ouviu-o duramente. Tão desamparado... Já menos tensa, mandou-o entrar, numa mistura de francês e espanhol:

– Tenho muitos siameses, todos legítimos, mas só vendo a gente que vale a pena. Querendo, pode ficar aqui um dia ou dois. Se gostar mesmo deles, então arranjamos uma para você.

Meu amigo topou. A casa era escura, imunda, sem nenhum conforto; a comida, insignificante; dormia sobre uma esteira, na cozinha – tudo impregnado de um cheiro áspero de urina. Mas havia cerca de vinte gatos finíssimos, bem alimentados, a maioria filhotes, que a senhora identificava sem hesitação e aos quais se dirigia em húngaro. O rapaz sentiu que renascia naquele ambiente bizarro, de sonho e pesadelo. Conversava pouco com a velha, que nunca lhe fez confidências, e a ajudava a cuidar dos bichos. No fim de três dias, pensou que gostaria de ficar ali para sempre, acariciando o pelo doce dos siameses, junto àquela mulher enigmática e arisca como os felinos, e imune a tudo que lhe causaria tanta dor. Afeiçoara-se a uma gatinha de menos de dois meses, ainda informe, de rabo mais comprido que o corpo e focinho excepcionalmente delgado, mas que já deixava entrever no caminhar trôpego a perfeição da futura beleza. Não duvidou mais: era essa a companheira que afanosamente procurava.

Foi quando a húngara lhe disse:

– Está na hora de você ir embora. Vejo que merece a Greta.

O jovem tremeu de alegria:

– Posso levá-la?

– Claro que não: são trezentos dólares, e você não está em condições de gastar tanto.

– Não faz mal, dou um jeito. Pago uma parte agora e depois arranjo o resto. Prometo mandar o dinheiro logo que puder.

– Não, não preciso disso, nem quero que faça mais sacrifícios. Você acabaria com raiva da Greta. De qualquer maneira, ela não aguenta a viagem até Buenos Aires.

– Mas então o que é que eu faço?

– Volte para a cidade e escolha outra gata. Você já está preparado para isso.

Meu amigo protestou, lamentou-se, teve ódio da velha e de todos os animais. Finalmente, sem se despedir, tomou a charrete e empreendeu o regresso. No caminho, à medida que meditava sobre a sua desdita, foi cimentando no fundo de si mesmo a convicção de que conseguiria uma gata de qualquer maneira. Decidido a recomeçar a busca, logo ao chegar ao destino comprou um jornal e dirigiu-se ao primeiro endereço que encontrou, anunciando siameses. Escolheu com indiferença uma bichinha triste, de pelo baço; adquiriu-a pela quantia equivalente a cento e cinquenta dólares e deu-lhe o nome de Greta.

A gatinha fora mal destetada e sofria de raquitismo. Não comia, não miava, quase não se mexia, limitando-se a aceitar resignadamente os cuidados do rapaz, que a princípio eram quase mecânicos, movidos menos pelo afeto do que pela raiva. Empenhado no desafio, gastou uma nota com o veterinário; dava-lhe óleo de fígado de bacalhau pela goela e chegou até a aplicar-lhe injeções de cálcio, diariamente – ele que nunca se animara a segurar uma seringa. Greta admitia tudo, sem protestar. Pouco a pouco começou a reconhecer o dono, premiando-o, cada vez que ele se aproximava, com um olhar sempre mais azul. Uma tarde ronronou, quando o rapaz lhe trouxe o pires de leite, e lambeu-lhe de leve os dedos. No dia seguinte, durante a sua ausência, arrastou-se até a porta da entrada. A partir de então, ele nunca mais chegou em casa sem encontrá-la ali, à sua espera, e já do elevador, ao passar pelo segundo andar, ouvia os miados com que ele o aguardava, no oitavo.

Salvaram-se ambos. Continuam juntos até hoje e inseparáveis. Meu amigo casou-se há alguns meses e Greta já teve três filhotes.