Livro recupera trajetória de Luciano Carneiro, fotógrafo do mundo
16 DE outubro DE 2020 | nani rubin
Uma vida breve, mas intensa. O que poderia ser um clichê para trajetórias encerradas abrupta e precocemente ganha uma dimensão precisa no caso de Luciano Carneiro. Cearense nascido em 1926, ele foi um dos fotojornalistas mais atuantes de sua geração, com uma carreira fulgurante na revista O Cruzeiro. Mas sua morte trágica, num acidente aéreo em 1959, aos 33 anos, o tirou de cena – e, durante muito tempo, da memória do fotojornalismo brasileiro. O livro Luciano Carneiro – Fotojornalismo e reportagem (1942-1959), que será lançado no dia 22 de outubro, com um debate no canal do IMS no YouTube, vem suprir esta lacuna. Publicado pelo IMS em parceria com a Fundação Demócrito Rocha e apoio da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, a publicação traz um vasto panorama da trajetória do fotógrafo, marcada, por um lado, por grandes reportagens internacionais e, por outro, pelo interesse profundo pelo Brasil – em ambos os casos, sobressai seu olhar fortemente humanista, a lente primordial através da qual Luciano Carneiro olhava o mundo.
O livro reúne fotografias e reproduções de páginas da Cruzeiro, onde Luciano publicou de 1949 a 1959 – praticamente toda a sua carreira, depois de uma passagem pelos jornais Correio do Ceará e O Unitário, ambos em Fortaleza, cidade que deixou aos 22 anos para morar no Rio. Cerca de 35% do material fotográfico utilizado faz parte do acervo do IMS, que abriga um conjunto de 360 imagens oriundas da família do fotógrafo. Os outros 65% vêm do arquivo do Estado de Minas, do mesmo grupo dos Diários Associados, conglomerado de imprensa de Assis Chateaubriand do qual O Cruzeiro fazia parte. Coordenador de Fotografia do IMS e organizador do livro, Sérgio Burgi pesquisou durante 20 dias entre as cerca de quatro mil fotografias ampliadas de Luciano no centro de documentação do Estado de Minas. Mas conta que há mais de 20 mil imagens dele em negativo, e ressalta: tudo que está lá é "muito bom".
"Ele não era um fotógrafo de construir redundâncias", observa Burgi. "Na Rússia fez 40 filmes, mas só publicou umas 30 imagens, é como se tivesse publicado um filme apenas. Vai ser preciso ainda digitalizar esse conjunto todo para estudá-lo. Daria para fazer um livro sobre a Rússia, outro sobre a Revolução Cubana, tem várias camadas que ele não editou, porque não eram o foco das matérias", diz.
Na obra lançada agora, o enfoque é mostrar a atuação de Carneiro como fotojornalista de uma das mais populares publicações da imprensa carioca na época, onde integrava um time de peso – entre seus colegas estavam José Medeiros, Flavio Damm, Luiz Carlos Barreto e Jean Manzon. Mas com um diferencial. Ousado e destemido, Carneiro rapidamente se destacou como correspondente estrangeiro, cobrindo eventos-chave do século XX. Duas das mais importantes reportagens produzidas por ele abrem o volume: a Guerra da Coreia e a Revolução Cubana. Na primeira, publicada em março de 1951, Luciano, que tinha brevê de piloto e de paraquedista, conseguiu se juntar ao Exército americano para saltar sobre as linhas inimigas. Na segunda, testemunhou e registrou, em janeiro de 1959, a entrada das forças lideradas por Fidel Castro em Havana.
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Coordenador editorial do IMS, Samuel Titan observa uma pauta comum, um "fio vermelho", como chama, que atravessa o percurso do fotógrafo: a Guerra Fria. "É notável que esse cara, um cearense abelhudo, tenha esse faro para sentir que era ali que estava se dando a História", diz. "É claro, ele faz coisas que escapam um pouco disso, mas muitas vezes a matéria que não tem nada a ver com a Guerra Fria é feita num intervalo do conflito. O exemplo para mim mais interessante é o do Japão. No livro tem uma reportagem grande no Japão sobre as mulheres pescadoras de pérolas. É o tipo de pauta meio National Geographic, mas fica menos com essa cara quando você sabe que ele só estava no Japão porque no fundo estava lá tentando conseguir acesso à Coreia em guerra".
O livro mostra esse percurso por trás da Cortina de Ferro, que o levou, além de Cuba e ao conflito na Coreia, à União Soviética de Kruschev e à Iugoslávia do marechal Tito. E ainda reportagens feitas no Egito de Nasser, onde a nacionalização do Canal de Suez despontava como uma importante questão geopolítica da época, e à África do trabalho humanitário do médico Albert Schweitzer.
Tudo isso é apresentado não como um livro de fotografia tradicional, em que as fotos são destacadas como obras autônomas, mas também com a reprodução das reportagens para as quais foram produzidas, contextualizando as imagens.
"Quisemos incluir um pouco das circunstâncias, do sabor que essas fotos tinham quando elas não eram peças de exposição, não eram objeto de catálogo", conta Titan. "Estávamos tentando também fugir de uma estetização post mortem das fotos, que foram feitas para contar uma história, num veículo específico, e portanto, numa edição específica. Ele era um homem de imprensa, editava, cortava suas fotos. Não temos que ficar preocupados se o negativo está representado ou não está representado. Isso é papo de fotógrafo que trabalha com galeria de arte", diz.
"Ele é um fotógrafo que de fato trabalha essa relação com a reportagem e a fotografia quase numa vertente de sacerdócio. Nunca abriu mão da objetividade e do compromisso com essa objetividade. Dentro da redação era um profissional que fustigou, travou embates com David Nasser e Manzon, que tinham um viés mais sensacionalista, de um jornalismo que guardava pouco compromisso com os fatos", observa Burgi.
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As grandes reportagens feitas no Brasil, também incluídas no livro, retratam bem isso. A rebelião de posseiros em Trombas, Goiás, o movimento estudantil contra o aumento de anuidades escolares, ou a reportagem em que, a partir dos dados alarmantes de mortalidade infantil no país, compara, em outubro de 1950, a realidade de crianças da favela da Praia do Pinto, no Leblon, à de crianças de classe média do mesmo bairro, com texto e fotos de sua autoria, são bastante contundentes.
Responsável pela detalhada cronologia incluída no livro, a pesquisadora do IMS Andrea Wanderley vasculhou a Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, publicações sobre O Cruzeiro e trabalhos relacionados ao fotojornalismo no Brasil. Andrea listou quase 500 reportagens de Luciano Carneiro, somando O Cruzeiro e A Cigarra, também dos Diários Associados.
"De todos os fotógrafos da sua geração, ele era o melhor repórter, tinha ideias bem consistentes sobre o papel do fotojornalismo", diz ela. Andrea identificou um fato curioso: Carneiro demora um pouco a aparecer na Cruzeiro com a atividade pela qual se tornaria conhecido. Na primeira matéria em que seu nome aparece, "Jerônimo vai ao Rio" (15/5/1948), sobre um pescador que viajou de jangada de Fortaleza ao Rio, ele assina o texto – as fotos são de Antonio Albuquerque. Na segunda, "Encontro de gerações" (12/6/1948), sobre a realização, em Poços de Caldas, da segunda convenção de aviadores civis, ele era personagem. Na terceira, "Garotas do Ceará" (4/12/1948), ainda texto. Só em 21 de maio de 1949, com a reportagem "O drama de Orós", sobre o abandono da construção do açude do Orós, no Ceará, ele inaugura sua prolífera colaboração como fotógrafo.
O livro também traz imagens menos combativas do fotojornalista, de eventos sociais e culturais, como o Festival de Cannes. "Profissionais como o Luciano Carneiro tinham uma condição excepcional de trabalho: quando se viajava pouco, eles estão viajando muito, quando se tem dificuldade, eles têm facilidade. Era uma vida quase de fantasia, que ia da guerra ao jet set. Ele abre e fecha a década com dois conflitos importantíssimos, e no meio tempo está fotografando a Sophia Loren, a coroação da rainha Elizabeth" diz Burgi.
Foi um evento assim, mundano – o primeiro baile de debutantes da nova capital federal – seu último trabalho. Luciano Carneiro voltava de Brasília, após uma escala em São Paulo, quando o avião em que viajava caiu, no dia 22 de dezembro de 1959, durante procedimento de pouso no Galeão. Os rolos de filmes foram salvos, chamuscados. A última imagem do livro é a reprodução de uma das páginas da edição da Cruzeiro de 16 de janeiro de 1960, em que a revista fez uma homenagem ao seu fotógrafo mais intrépido, publicando as fotos sem título ou legenda – pois era ele mesmo quem as fazia sempre.
O primeiro Baile de Debutantes em Brasília, última reportagem de Luciano Carneiro, realizada em dezembro de 1959 e publicada postumamente em O Cruzeiro em 16 de janeiro de 1960, sem título e legendas. Acervo Jornal Estado de Minas/Revista O Cruzeiro
O fato de seu nome ter caído no esquecimento por tanto tempo se explica. O Cruzeiro e revistas semanais como ela entraram em decadência, o golpe de 1964 impôs um corte profundo na cultura, o fotojornalismo só ganharia reconhecimento, fora das circunstâncias estritas de sua atuação, algumas décadas depois. O trabalho de Luciano só recentemente começou a ser revisto. Em 2018, o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, em Fortaleza, numa parceria com o IMS, realizou a exposição Luciano Carneiro: O olho e o mundo. Foi quando a Fundação Demócrito Rocha, sediada em Fortaleza e com atuação sustentada em ensino, editoração e uma emissora educativa, propôs ao IMS a parceria para a realização do livro, que levou dois anos para ser gestado.
"Aqui em Fortaleza Luciano Carneiro dá nome a uma importante avenida, mas é pouco conhecido, inclusive pelos cearenses. O livro é muito importante, referencial para o Ceará, para resgatar essa figura valiosa na história do fotojornalismo, do estado e do Brasil – diz Marcos Tardin, gerente-geral da Fundação Demócrito Rocha.
Nani Rubin é jornalista e integra a coordenadoria de internet do IMS
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