Drummond e o lado de cá
4 de outubro DE 2021 | Elvia bezerra
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O grupo dos quatro mineiros, unidos durante toda a vida, tiveram seus arquivos destinados a instituições diferentes depois de mortos. Enquanto os de Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos estão sob a guarda do IMS, os de Fernando Sabino e Hélio Pellegrino foram confiados ao Arquivo-Museu de Literatura (AMLB) da Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB). Mais radical ainda é a divisão do arquivo de um mesmo escritor, como acontece com Carlos Drummond de Andrade, que tem uma parte de seus papéis no AMLB, também guardião do acervo de Pedro Nava, e outra do IMS, que cuida do papelório do historiador mineiro Francisco Iglésias.
É mais do que natural que haja conexões entre todos esses arquivos e que as duas instituições, parceiras no Portal da Crônica Brasileira, se aproximem por meio de achados, como o de uma carta delicadamente atrevida de Paulo Mendes Campos a Carlos Drummond de Andrade, guardada no AMLB.
O cronista de “O amor acaba” não passava dos 21 anos quando, de Belo Horizonte, escreveu a Drummond sobre seu descontentamento com um poema, divulgado em revista, do já consagrado autor de Sentimento do mundo (1940).
Datada de 11 de maio de 1943, nela o remetente usa de franqueza para expressar sua opinião a respeito da produção poética de Drummond recém-publicada. Considera que o poema “Notícias” não está no mesmo plano de realização de outros como “Versos à boca da noite” ou “Anoitecer”, para citar dois, também publicados em periódicos, até então.
De fato, embora haja aproximação no tom dos poemas, os versos de “Notícias”, em que se lê “Os telegramas vieram no vento./ Quanto sertão, quanta renúncia atravessaram!” não têm, por exemplo, a gravidade da estrofe de abertura de “Versos à boca da noite”:
Sinto que o tempo sobre mim abate
sua mão pesada. Rugas, dentes, calva...
Uma aceitação maior de tudo,
e o medo de novas descobertas.
Ou o eco de pavor do refrão “desta hora tenho medo”, do poema “Anoitecer”, cuja última das quatro estrofes é:
Hora de delicadeza,
gasalho, sombra, silêncio.
Haverá disso no mundo?
É antes a hora dos corvos,
bicando em mim, meu passado,
meu futuro, meu degredo;
desta hora, sim, tenho medo.
Ao final da carta, Paulo Mendes Campos se desculpa: “Espero sua compreensão para este pequeno desabafo”.
Drummond compreendeu – prova outra carta, do ano seguinte, também de Paulo, datada de 16 de abril de 1944, em que se evidencia maior aproximação entre os dois. Paulo volta a opinar sobre outros poemas do amigo. Percebe-se, dessa vez, um à vontade que não existia antes, uma forma mais livre, próxima à intimidade reservada, e até mesmo uma postura de igual pra igual ao formular ideias como esta: “Estou convencido que a decantada dignidade mineira é apenas apatia, comodismo, preguiça. Conseguiram arranjar o nome de uma virtude para uma série de vícios” – escrevia ele, com o radicalismo próprio da juventude e desejoso de acabar com qualquer tipo de conservadorismo.
Não há, no arquivo de Paulo Mendes Campos, no IMS, cartas de Drummond do ano de 1943 ou 1944, o que não significa que ele, senhor de proverbial pontualidade, tenha deixado de responder ao jovem conterrâneo. O que pode justificar a ausência de respostas é pensar que, por algum motivo insondável, cartas desses anos, além de outras, não tenham sido incluídas no conjunto doado ao IMS.
Quem, no entanto, lê páginas do diário de Drummond, só tornadas conhecidas décadas depois, com a publicação de O observador no escritório (1985), vê que a primeira anotação, feita no dia 15 de maio de 1943, testemunha a receptividade do poeta à crítica do rapazinho: “Compreendi e gostei”, registra Drummond:
1943
Maio, 15 - Paulo Mendes Campos, mineiro de 21 anos, poeta dotado de senso crítico, muito generoso para comigo, esboça em carta restrições a um poema que publiquei ultimamente: "espero sua compreensão para este pequeno desabafo. Não é cabotinismo." Compreendi e gostei. Tantos elogios de amigos, em volta, ameaçam comprometer meu autojulgamento. Os ataques que me vinham – que, me vêm sempre – eram todos do lado de lá, o lado dos conservadores e reacionários, que não me interessa. Restrições partidas do lado de cá, de gente amiga e independente, alertam o espírito e impõem mais rigor."
É curiosa a afirmação de que não lhe interessa o lado de lá, dos conservadores e reacionários. Esses foram os que o atacaram maciçamente pelo antológico “poema da pedra”, como ficariam popularmente conhecidos os versos de “No meio do caminho”. O bombardeio do lado de lá não o atingiria, não lhe interessava do ponto de vista estético, certamente, mas seduzia o burocrata e arquivista nato que ele era, funcionário exemplar como chefe do gabinete de Gustavo Capanema, ministro da Educação e Saúde Pública de 1934 a 1945, data em que Rodrigo Melo Franco de Andrade o capturou para a diretoria do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) por mais quase duas décadas.
O gosto por papéis era tamanho que o levou a guardar, com muito método, os recortes de jornal publicados pelo lado de lá a respeito do “poeminha da pedra”, o que resultou no livro Uma pedra no meio do caminho: biografia de um poema, com seleção e montagem do próprio autor, reeditado em 2010 pelo Instituto Moreira Salles, com organização de Eucanaã Ferraz, para quem “o poeta e funcionário reúnem-se de modo exemplar nesse livro”. Assim como está presente em “Papel”, de As impurezas do branco:
[...]
Papel quanto havia em mim
e nos outros, papel
de jornal
de embrulho
papel de papel
papelão
Drummond tinha mesmo grande interesse em papéis – prova seu arquivo, tanto no IMS quanto no AMLB. Isso do ponto de vista material. Mas a curiosidade do espírito era sobre o que pensava e dizia o lado de cá. E bonita é a sua compreensão quando escreve no diário que restrições vindas de gente como Paulo Mendes Campos, “gente amiga e independente, alertam o espírito e impõem mais rigor."
Que Drummond soube receber a crítica, não há dúvida. Nem por isso deixaria de incluir o poema “Notícias” em A rosa do povo (1945), ao lado dos elogiados “Versos à boca da noite” e “Anoitecer”.
Se os dois amigos voltaram ao assunto, não se sabe. O que é certo é que, em agosto de 1945, quando Paulo Mendes Campos veio morar no Rio, contou muito com o apoio de Drummond, que, à época, organizava uma espécie de dicionário de escritores para o Instituto Nacional do Livro e tratou de levar o recém-chegado para colaborar no projeto. O dicionário não foi adiante, mas o dinheiro ganho com o trabalho, somado à colaboração em jornais, permitiu que Paulo alugasse um quarto de hotel e, pouco depois, um outro, no décimo andar do edifício Miraí, em Copacabana. Em Carta a Otto ou um coração em agosto ele o descreve assim:
Alto e espaçoso; cama também espaçosa; janelas pródigas com cortinas azuis; cobrindo o chão, um vasto tapete que me faz sentir felino quando passeio para lá e para cá; numa das paredes, há um quadro horrível, uma cigana com um pandeiro e o céu atrás”.
Ali ele recebeu a visita de Drummond, o “magro poeta em pessoa”, que acabara de lançar A rosa do povo e, querendo ficar três meses sem escrever, emprestou-lhe sua Remington portátil. Tornou mais suave ao amigo aquele novembro de 1945, em que o calor já era “mais intenso que o afamado calor das amizades”, garantia o dono provisório da Remington em carta a Otto Lara Resende.
Elvia Bezerra é pesquisadora de literatura brasileira e colaboradora no IMS