Clássico do cinema nacional, sempre no topo da lista dos melhores documentários brasileiros de todos os tempos, Cabra marcado para morrer tem sua história desconhecida por uma boa parcela do público. Isso porque o filme original concebido por Eduardo Coutinho, uma ficção inspirada no neorrealismo italiano, teve as gravações interrompidas pelo golpe militar de 1964. Quando Coutinho retomou o projeto, 17 anos depois, este tomaria a forma do documentário que conhecemos hoje.
O filme imaginado lá atrás sobreviveu tanto nas cenas rodadas (calcula-se que 40% do texto chegou a ser filmado, sendo que algumas cenas foram incluídas no documentário lançado em 1984), como no roteiro datilografado à máquina e com anotações feitas à mão pelo cineasta. Este datiloscrito, desde 2019 no acervo de Eduardo Coutinho sob a guarda do IMS, vai ganhar em 6 de outubro uma versão digital, no ebook O primeiro cabra, editado pelo instituto e disponibilizado ao público no site.
"É um livro muito curioso para cinéfilos, para amantes de documentários e para interessados na história do cinema brasileiro. É um tesouro trazer isso à tona", diz Carlos Alberto Mattos, organizador do volume e autor do ensaio que acompanha o roteiro. Para ele, trata-se de uma oportunidade preciosa para que os admiradores da obra do Coutinho conheçam o projeto original:
"Todo mundo sabe que este documentário é o resgate de um material filmado 17 anos antes, de um material de ficção neorrealista, e vê, no filme de 1984, cenas em preto e branco. Mas não se sabe o que eram essas cenas, o que seria o filme. Você vê fragmentos, mas não sabe o que ele pretendia fazer. Esse roteiro nunca circulou. É o roteiro do que seria o projeto caso ele fosse concluído lá em 1964", diz ele.
Coordenador editorial do IMS e responsável pelo projeto, Samuel Titan ressalta a oportunidade do lançamento neste momento:
"Além da importância intrínseca para quem estuda ou admira o cinema do Coutinho, tem a ver também saber do que estamos falando quando se fala de golpe de Estado. Este é o roteiro de um filme que não foi, e não foi por uma razão de ordem extra-artística, o golpe de 64, um caso que fala da grande colisão entre as artes e o rumo da política no Brasil. Estamos lançando pela primeira vez este roteiro quando o governo enaltece o golpe e uma parte da opinião pública começa a achar que ele não foi tão ruim. Neste sentido, o ebook serve tanto para iluminar o tamanho do Coutinho, como intelectual, como cineasta, como pessoa, como serve também para medir o tamanho do golpe."
Titan observa, ainda, que o lançamento é uma forma de continuar o envolvimento do instituto com a obra do cineasta, morto em 2014.
"Ele está presente no nosso apoio à exposição Ocupação Eduardo Coutinho no Itaú Cultural em São Paulo, depois recebida pelo IMS Rio, mas veio de antes, com a decisão do José Carlos Avellar (coordenador de cinema do IMS à época), do Flávio Pinheiro (ex-superintendente-geral do IMS) e do João Moreira Salles de promover revisitação do Coutinho a seus personagens para os extras do DVD Cabra marcado para morrer (lançado em 2014 pelo instituto).
Para celebrar o lançamento do ebook, o IMS estreia a página de autor de Eduardo Coutinho em seu site, conteúdo para pesquisadores e amantes do documentário brasileiro. Como cereja do bolo, Cabra marcado para morrer será exibido entre 6 e 14 de outubro nas salas de cinema do IMS Rio e do IMS Paulista (veja aqui a programação). Também serão projetados dois médias-metragens de Coutinho relacionados ao projeto de Cabra, Sobreviventes da Galileia e A família de Elizabeth Teixeira.
Junto ao roteiro original e do ensaio de Carlos Alberto Mattos, a publicação traz ainda imagens históricas das filmagens e dos seus protagonistas, além de um breve histórico do projeto. Cabra marcado para morrer começou a ser rodado em 1964. A ideia original era realizar uma reconstituição ficcional da ação política que levou ao assassinato do líder camponês paraibano João Pedro Teixeira. No filme, os camponeses interpretavam suas próprias vidas, num recurso similar ao utilizado pelo neorrealismo italiano. Tratava-se de um projeto do Centro de Cultura Popular da UNE, com verba do Ministério da Educação e apoio logístico do Movimento de Cultura Popular de Pernambuco (MCP), criado em 1960, na primeira gestão de Miguel Arraes na prefeitura do Recife.
No entanto, com o golpe de 31 de março, as forças militares cercaram a locação no engenho Galileia, em Pernambuco, e paralisaram as filmagens. Dezessete anos depois, em 1981, Coutinho retomou o projeto e procurou Elizabeth Teixeira, viúva de João Pedro, e outros participantes do filme interrompido. O tema central passou a ser a história de cada um deles que, estimulados pela filmagem e revendo as imagens do passado, elaboram para a câmera os sentidos de suas experiências. Lançado em 1984, o filme se tornou um clássico do documentário brasileiro, unindo as memórias de momentos distintos da história do país.
O ebook disponível a partir de 6/10 no site do IMS torna possível visualizar o que seria o filme se concluído na década de 1960. O material passou alguns anos guardado na garagem do pai do cineasta David Neves, um general do Exército. Mais tarde, os copiões foram depositados na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro sob o título-disfarce de Rosa do campo. Em 1981, foram retomados para as filmagens definitivas de Cabra marcado para morrer.