Ocupação Eduardo Coutinho
IMS Poços
Textos da exposição
Responsável por obras-primas do cinema brasileiro, como Cabra marcado para morrer, Edifício Master e Jogo de cena, Eduardo Coutinho (1933-2014) foi um criador irrequieto e um entrevistador extremamente hábil. Com o depuramento contínuo de seu método e a experimentação com os limites do real e de sua representação, criou uma teoria do documentário e se estabeleceu como um legítimo pensador do cinema.
Ao longo da carreira, Coutinho foi muitos. Atuou na ficção, na reportagem televisiva, no documentário social, no chamado cinema de conversa e na fronteira entre todos esses campos – sempre com o mesmo interesse pelo momento da filmagem e com abertura para ouvir o outro e fazê-lo crescer diante da câmera.
Esta exposição pretende alargar o conhecimento sobre a obra de Coutinho, revisitando-a por meio de cortes transversais no tempo, que põem em evidência temas, preferências e constantes do diretor em suas várias fases, tanto na ficção como no documentário. Sua relação com o teatro, a televisão, a religiosidade, a memória, a oralidade e a paródia são alguns dos tópicos que recebem atenção especial.
Junto a uma seleção de trechos de filmes, vídeos e depoimentos, são expostos documentos e materiais referentes ao seu processo de criação, seja na busca e escolha de personagens, seja no set de filmagem ou no laborioso trabalho de montagem.
Concebida e realizada pelo Itaú Cultural em São Paulo, em 2019, a Ocupação Eduardo Coutinho contou com a colaboração do Instituto Moreira Salles, que atualmente cuida de seu acervo. Em 2020, a mostra foi apresentada no IMS Rio de Janeiro e em 2025 chega a Poços de Caldas para oferecer ao público uma imersão inédita no universo do cineasta.
Eduardo Coutinho cresceu em São Paulo e foi um cinéfilo aplicado na adolescência e na mocidade. Largou o curso de direito e foi estudar cinema no Institut des Hautes Études Cinématographiques, em Paris. Ali realizou seus primeiros curtas: a ficção Le téléphone e os documentários inacabados La Maison du Brésil e Saint-Barthélemy. De volta ao Brasil no fim de 1960, trabalhou como revisor e copidesque, e teve breves passagens pelo teatro e pela crítica de cinema. Por meio de Leon Hirszman, aproximou-se do pessoal do Cinema Novo e mudou-se para o Rio em 1961.
Fruto de seu humor fino e de um permanente questionamento das ideias de autoria e originalidade, o gosto pelas citações e pela paródia é uma faceta menos conhecida de Coutinho. Ela se manifestou em filmes, textos e até dedicatórias em livros alheios. Em seu único curta de ficção, Le téléphone, a personagem feminina se expressa com frases retiradas de um livro de gramática francesa. A lista de compras de Rosinha em O homem que comprou o mundo, uma das contribuições do diretor a um roteiro que já existia, é um primor de oralidade surrealista. No fim da carreira, Coutinho planejou um filme feito somente de citações, a serem veiculadas em tom paródico. A pesquisa rendeu uma coletânea, informalmente intitulada “Dossié da Estupidez Humana”.
A relação, ora produtiva, ora crítica, com a televisão pontuou a vida e a carreira de Eduardo Coutinho. Com o prêmio ganho num programa da TV Record respondendo sobre Charles Chaplin, ele viajou à Europa em 1957, onde se iniciou no aprendizado de cinema. Já na década de 1970, aprimorou-se na criação de documentários enquanto trabalhava para o Globo Repórter, semente da grande aventura que foi a retomada de Cabra marcado para morrer. Para um evento comemorativo dos 50 anos da televisão brasileira, realizou em 2000 o curta Porrada!, em parceria com a TV Pinel. Por fim, em 2009, condensou o bestiário da televisão aberta no protofilme Um dia na vida, cuja exibição é interdita por questões de direitos autorais.
Poucos documentaristas foram tão pessoais quanto Eduardo Coutinho na criação de seu método. O frescor e a profunda humanidade de seus filmes de conversa provêm de escolhas criteriosas na eleição de personagens, no ritual das gravações e na edição. Muito do seu processo de trabalho passava pelos cadernos manuscritos, onde ele anotava suas impressões sobre os interlocutores e outras tantas idiossincrasias, com frequência indecifráveis para o comum dos mortais. O trabalho extensivo com os mesmos colaboradores garantiu um contínuo aprimoramento e uma convergência rara de propósitos em torno de certa ideia de cinema.
O cinema pode não mudar o mundo, mas pode impactar a vida e o ego dos personagens de um documentário. Coutinho estava atento a isso, e seus filmes deixaram provas cabais desse fenômeno. É o caso de Cabra marcado para morrer, que retirou Elizabeth Teixeira de 17 anos de clandestinidade, ela que está completando 100 anos de idade em 2025. Ou de Theodorico, o imperador do sertão, em que o diretor deixou o personagem “sequestrar” a sua reportagem e revelar-se por inteiro à sua maneira. Em Santa Marta, duas semanas no morro, a presença da câmera empodera uma moradora perante um policial. Já quando gravou Boca de lixo, Coutinho enfrentou a rejeição dos catadores e, pela insistência em filmá-los, os transformou de figurantes em pessoas ricas de humanidade.
Eduardo Coutinho costumava incluir nos documentários a explicitação dos procedimentos adotados e o que ele pretendia (ou não) com aquela filmagem. A esses dispositivos, ele chamava de “prisões”, que delimitavam tempo, espaço, contexto social e estratégias para a realização do filme, condições fundamentais do seu processo de criação. Em geral, essa explanação era inserida, pela sua própria voz, no início de cada documentário.
Apesar de agnóstico, Coutinho sempre valorizou o papel da religião na vida das pessoas. Romeiros do Padre Cícero, O fio da memória e Santo forte foram filmes inteira ou predominantemente dedicados ao assunto, mas não esgotam o interesse do realizador. Em quase todos os seus documentários, a fé e a vida espiritual dos personagens eram um aspecto a ser levado em conta desde a fase de pesquisa. A religião era vista não só como componente do imaginário, mas também como fator determinante na vida prática e nos valores de cada um. Ele próprio se dizia um “materialista mágico”, sujeito a superstições e reverente a amuletos.
Grande parte dos filmes de Eduardo Coutinho se nutriu de memórias – de vida, de amores, de trabalho. Mas, em alguns casos, ele se dedicou especialmente à reconstrução de lembranças individuais no bojo de grandes experiências históricas. Em Cabra marcado para morrer, a memória camponesa, o golpe de 1964 e um filme interrompido. O fio da memória voltou-se para a história das pessoas negras no Brasil e a evocação de um determinado criador popular. Por sua vez, Volta Redonda, memorial da greve e Peões partiram em busca da memória operária em momentos culminantes de reivindicação. Não por acaso, esses são os títulos mais diretamente políticos de sua obra.
“O som mais bonito que existe é a voz humana”, costumava dizer Eduardo Coutinho. O seu cinema é o maior comprovante dessa afirmação. A fala é onde seus personagens se constituem e se reinventam diante da câmera. Os corpos falam também com as expressões do rosto, as sutilezas do olhar, o traçado dos gestos.
Nos anos 1960, Coutinho fez brevíssimas e divertidas aparições em filmes de ficção, seus e alheios. Em Câncer, de Glauber Rocha, por exemplo, fez alusão a seus queridos caderninhos. Tempos depois, emprestou sua voz característica a personagens que não apareciam na tela.
Embora fosse desafinado e não memorizasse direito as letras, Coutinho gostava de cantar. Gostava principalmente de ouvir os outros cantarem. Desde o início da carreira, pedia que seus personagens cantassem como uma forma de revelarem outra dimensão de si mesmos. Com As canções, dedicou um filme inteiro a esse prazer.
Num cinema voltado para a oralidade, há lugar também para curiosos instantes de silêncio. Nessas horas, percebemos melhor como Coutinho construía seus filmes a partir de uma tensão entre a palavra e sua ausência, entre o que era dito e o que era calado.
Frequentador assíduo de teatro na juventude, Coutinho dirigiu Pluft, o fantasminha em Paris, nos anos 1950, e trabalhou com Amir Haddad e Chico de Assis no início da carreira. No cinema, adaptou A falecida, de Nelson Rodrigues, com o amigo Leon Hirszman, e aproximou Shakespeare do cangaço em Faustão. Nos seus documentários, estimulou a autofabulação dos personagens, em busca de uma espécie de teatro da vida. As fronteiras entre relato documental e encenação, entre personagens reais e atores foram seguidamente esgarçadas em As canções, Jogo de cena e Moscou, filmados em locações teatrais.
Vez por outra, Coutinho era desafiado pelas circunstâncias da filmagem ou a verve de seus interlocutores. São momentos antológicos de sua obra, quando a conversa toma rumos inesperados ou é interrompida por força do acaso.
