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Cinema que resiste

17 de outubro de 2019

A 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo começou ontem (16 de outubro) em alta voltagem política, não tanto pelo filme exibido na sessão de abertura – Wasp Network, de Olivier Assayas, do qual falaremos abaixo –, mas pelo tom de resistência democrática dos discursos de organizadores do evento, artistas e políticos. Presente na plateia, o jornalista e escritor Fernando Morais, autor do livro que inspirou o filme, levantou-se ao ter seu nome citado no palco e, muito aplaudido, fez o conhecido “L” com os dedos, suscitando alguns gritos de “Lula livre” que não chegaram a formar um coro.

 

 

Na programação deste ano, a vertente mais forte talvez seja justamente a dos filmes brasileiros, com mais de sessenta longas-metragens do país, incluindo os novos de diretores importantes como Karim Aïnouz (A vida invisível, representante brasileiro na disputa do Oscar), Fernando Meirelles, Luiz Rosemberg Filho, Eryk Rocha, Sandra Kogut, Lirio Ferreira, Tata Amaral, Paulo Caldas, Camilo Cavalcante, Aly Muritiba, Sérgio Machado, Andrucha Waddington, Felipe Bragança, Claudio Marques & Marilia Hughes, Helvécio Marins, Ana Luiza Azevedo, Heitor Dhalia e José Eduardo Belmonte, entre muitos outros.

Claro que essa opção tem muito de afirmação política num momento em que o cinema brasileiro se vê ameaçado pelo obscurantismo reinante, mas foi ensejada também pelo fato de que dois outros festivais importantes, o de Brasília e o do Rio, que tradicionalmente ocorriam antes da mostra de SP, foram adiados devido a dificuldades de toda ordem, o que permitiu que desaguasse em São Paulo o grosso (e o fino) da nova e forte safra nacional.

 

Wasp Network

Mas vamos ao filme de Olivier Assayas, que aliás é um dos homenageados da mostra deste ano, ao lado do israelense Amos Gitai e do palestino Elia Suleiman, todos contemplados com retrospectivas.

A partir do livro-reportagem de Fernando Morais Os últimos soldados da guerra fria, Assayas constrói em Wasp Network o que poderíamos chamar de melodrama de espionagem. O contexto histórico-político é o da década de 1990, quando o colapso do comunismo soviético deixou Cuba numa situação socioeconômica crítica, acirrando o conflito entre o regime de Fidel Castro e seus dissidentes, sobretudo os que fugiram para Miami e, de lá, procuravam de diversas maneiras minar o governo da ilha.

A narrativa é centrada em alguns ex-pilotos da aeronáutica cubana que se exilaram nos Estados Unidos e lá se aproximaram de grupos de dissidentes envolvidos na militância anticastrista e, em alguns casos, no tráfico de drogas.

Nesse emaranhado, pleno de idas, vindas e reviravoltas, destacam-se duas histórias de amor (por isso falei em melodrama): um casal formado em Miami (Wagner Moura e Ana de Armas), um casal desfeito em Havana (Edgar Ramírez e Penélope Cruz).

Sem espetacularizar demais as cenas de ação e sem forçar o componente melodramático, Assayas acabou por fazer um filme correto, eficiente e que nunca resvala para a banalidade ou o desinteresse, mas ao qual parece faltar um certo punch, um ímpeto que empolgue o público. Talvez por isso a reação da plateia de São Paulo (e também a de Veneza, segundo consta) tenha sido a do aplauso respeitoso, mas não entusiástico.

 

Morto não fala

Fora da mostra de São Paulo, está em cartaz em várias cidades do país um filme que não deve passar batido: o terror brasileiro Morto não fala, de Dennison Ramalho. Se outras produções nacionais recentes, como As boas maneiras (Marco Dutra e Juliana Rojas), A sombra do pai (Gabriela Almeida) e Mormaço (Marina Meliande), utilizam o horror para pôr a nu chagas sociais profundas, Ramalho parece mais interessado no gênero em si. É um cultor do “terror raiz”. Não por acaso, foi assistente de direção de José Mojica Marins no último longa do lendário Zé do Caixão, Encarnação do demônio (2008).

 

Em Morto não fala essa paixão transborda a cada plano e é responsável tanto pela força do filme como por seus problemas – o maior deles, talvez, uma mistura um tanto aleatória de fontes de horror. Na história de um funcionário de necrotério (Daniel de Oliveira) que conversa com os mortos há de tudo: mortos-vivos, possessão, casa tomada etc. A partir de certa altura a lógica do sobrenatural desaparece e instaura-se uma espécie de vale-tudo. O visível talento do diretor na construção de atmosferas e na encenação de um terror literalmente carnal com certeza se beneficiaria de uma construção narrativa mais controlada e enxuta.