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As eras imaginárias

14 de outubro de 2019

A retrospectiva Margarida Cordeiro & António Reis está em cartaz no IMS Paulista de 8 a 16/10 e no IMS Rio de 15 a 22/10.

“Podemos mencionar um aforismo: quem viaja pode encontrar
uma cobra na mesa onde os mestres-cantores se encontram;
quem não viaja pode encontrar um mestre-cantor
em uma cobra.

José Lezama Lima

O cinema de Margarida Cordeiro e António Reis

“A Margarida era magríssima, de olhos enormes, como um pássaro que nunca descesse à terra. Falava pouco, mas criava à sua volta um campo magnético quase asfixiante. O António falava muito, mas de repente a Margarida arrebatava-o pelos ares fora, e a gente deixava de os ouvir. De que falavam, lá entre as nuvens, ou nas entranhas da terra? Falavam talvez de filmes por fazer, ouviam-se gritos de terror, abafados pelas nuvens, caíam cá em baixo penas ensanguentadas, salpicos vermelhos subiam à tona da água. Quando voltavam, já mais compostos e serenos, vestidos de gente, fingiam de novo ser um casal como os outros, um casal de artistas… Nunca saberemos o que os movia. O amor? A guerra? O sangue? O susto? As fitas? Ao lado deles, os trabalhos de amor dos outros casais perdiam o sal, perdiam o fogo. Pobres de nós. Quem os poderia imitar?”

Esta é a imagem que o cineasta Paulo Rocha guardou dos colegas Margarida Cordeiro (Mogadouro, Portugal, 1939) e António Reis (Valadares, Portugal, 1927-Lisboa, 1991), protagonistas violentos e ternos, discretos e escandalosos – tal e como Rocha recordou –, desse momento extraordinário do cinema português, que vai do início dos anos 1960 ao início dos 1980, e que, com parêntesis, capitulações e lampejos, continua fazendo com que alguns dos filmes que ainda chegam desse lugar permaneçam entre os mais vitais e inquisitivos do mundo. Mas de onde saiu esse casal de fênix solidário e solitário, essas duas figuras arrebatadas e ásperas, mas também “magnéticas”, “inimitáveis”, segundo os que com eles conviveram?

Menos conhecidos que Manoel de Oliveira, Pedro Costa ou o próprio Paulo Rocha, sua obra é tão decisiva como a de qualquer um deles, e como chegou a dizer João Bénard da Costa sobre seus filmes, “um dos grandes atos de amor e criação que a arte feita por portugueses nos tem dado. […] Uma das poucas pedras do caminho que nos pode ajudar a reencontrar a direção.” Essa direção deveria começar a ser buscada num episódio anterior, as filmagens de Acto da primavera (Manoel de Oliveira, 1963), filme crucial do cinema português, onde Rocha e Reis se encontraram como assistentes de direção de Oliveira.

 

Margarida Cordeiro e António Reis. Foto de Cinemateca Portuguesa

 

A contribuição no filme de Oliveira foi o primeiro trabalho profissional de Reis no cinema, seguido prontamente por três curtas-metragens documentais que dirigiu com César Guerra Leal: Painéis do Porto (1963), uma encomenda da Câmara Municipal da cidade, que é interessante se colocado em paralelo com O pintor e a cidade (Manoel de Oliveira, 1956); e os filmes industriais Do céu ao rio (1964) e Alto do Rabagão (1966), encomendados pela Hidroelétrica do Cávado. A recuperação dos dois primeiros é um dos maiores interesses deste ciclo, já que se trata de obras que só foram projetadas no momento da sua realização.

Também foi afortunada a encomenda de Paulo Rocha a Reis para que se ocupasse dos diálogos do seu filme Mudar de vida (1966). O segundo longa-metragem de Rocha se passa em uma comunidade de pescadores do norte, Furadouro, e, se o filme não se faz de mouco ao seu pano de fundo documental, é graças à precisão dos diálogos, que consegue transcender o lastro da dublagem.

Eram lugares e pessoas que Reis conhecia muito bem, não tanto porque ele havia nascido por ali e sua origem modesta o fez crescer rodeado de pescadores e trabalhadores como os do filme, mas porque, em um segundo momento, ele voltou a esses lugares, interessado por suas formas de vida e arte populares.

Reis tinha formação autodidata, e as suas inquietudes eram ecléticas. Primeiro foi escultor na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, e logo chegaria a ser conhecido, sobretudo como poeta, graças à sofisticação da mistura entre inspiração japonesa e neorrealismo de Poemas quotidianos (1957) e Novos poemas quotidianos (1960). Foi um aficionado por folclore, e sobre os estudos de campo que realizou nessa época, disse: “Me fez sofrer e deslumbrar por grandes e pequenas coisas – talvez consideradas por terceiros sem interesse dentro do âmbito [da etnografia]. Ocorre-me, por exemplo, a importância que dei ao lume feito ateando uma bolota seca pousada num vidrinho por meio de atrito duma pedra de isqueiro cravada num taco de madeira […]; ocorre-me também a importância que dei às brasas que iam pedir à forneira dum povo para o ferro de passar a roupa ou aos tabuleiros de carapaus pequeninos que ela assava, por favor, no forno do pão.” Observações como essas, alheias a qualquer ortodoxia, mas atentas a aspectos sensoriais e profundamente simbólicos da intimidade dos povoados da sua terra se converteram em um material básico do cinema de Reis e Cordeiro.

Os diálogos de Mudar de vida – secos, rudes, em staccato – foram muito apreciados por Rocha, o que animou Reis a seguir buscando a sorte no mundo do cinema profissional em Lisboa. Lá tentou emplacar seus primeiros projetos e começou a ministrar uma disciplina (“Espaço fílmico”) na Escola Superior de Cinema e Teatro, onde marcou gerações de futuros cineastas por sua “seriedade”, “autodisciplina” e “imensa cultura”, como recordou seu antigo aluno Pedro Costa.

Essa viagem a Lisboa foi crucial, já que foi quando Reis conheceu Margarida Cordeiro, que se converteu em cúmplice permanente e coautora dos filmes porvir. Cordeiro trabalhava como psiquiatra no Hospital Miguel Bombarda de Lisboa, e foi ela quem disse a Reis dos comoventes desenhos que um interno, Jaime Fernandes, tinha deixado ao falecer. O casal começou a trabalhar naquele que acabaria sendo seu primeiro filme: uma desgarrada homenagem à complexa figura de Jaime.

Se normalmente é difícil descrever qualquer filme de Cordeiro e Reis do ponto de vista de um gênero (“pré-socráticos”, dizia Jacques Rivette, porque talvez seja melhor ficar antes do logos pra poder entrar neles), essa sensação se intensifica em Jaime (1974), um dos filmes mais “inesperados” que existem – e o adjetivo agora é de João César Monteiro, que considerava este um dos melhores filmes da história do cinema. Por isso, antes de se perguntar o que é Jaime, pode ser útil começar por quem era Jaime, já que é no título que se oferece uma pista fundamental: Jaime é Jaime, um nome comum tal qual a multidão de portugueses comuns a quem ele se dirige. Essa era a condição ordinária que o filme realçava e, seguramente, a mais escandalosa. Reis e Cordeiro souberam evitar todas as armadilhas – muitas e compatíveis entre si – que apresentassem a Jaime como anormalidade, ou seja, como doente, e não como alguém que esteve em reclusão durante 38 anos; como outsider, e não como pobre; como artista bruto, e não como homem do campo.

O filme foi rodado nos preâmbulos da Revolução dos Cravos, mas estreou em 1 de maio, justo uma semana depois do 25 de abril, e o longa-metragem que o acompanhou como complemento da programação não podia ser mais adequado: O couraçado Potemkine, proibido em Portugal durante 48 anos. Margarida Cordeiro recorda como António Reis sempre se sentiu honrado por essa circunstância.

 

Cena de Ana, de António Reis e Margarida Cordeiro

 

O conhecimento sobre o período posterior à Revolução dos Cravos e sobre o cinema produzido em torno a esse evento é necessário para compreender os três longas-metragens de Cordeiro e Reis que sucederam Jaime: Trás-os-Montes (1976), Ana (1982) e Rosa de areia (1989). São todos pertencentes a esse tempo e movimento, mas também se apartam energeticamente do cinema e da política portuguesa da época. O gesto fundamental era se distanciar da agitação da capital para rodar na região mais pobre e esquecida do país, Trás-os-Montes, e esse afastamento no espaço se converteu também em um afastamento no tempo: à diferença de outros cineastas que iam e voltavam da cidade para o campo em função das urgências históricas e políticas da época, para eles aquela viagem desembocaria em uma espécie de destino: “Mesmo a sombra de uma árvore era, é, esteticamente geopolítica, interveniente e revolucionária”, disse Reis na época. E segue: “O filme não é para a cidade, o filme é contra a cidade. […] As pessoas de Lisboa devem permanecer humildes frente a esta população. Não devem só comer o pão e beber o vinho do Nordeste, mas ser conscientes de que a região tem outras riquezas a oferecer, mais importantes, mais preciosas.”

Em Trás-os-Montes, nasceu Margarida Cordeiro, e ali eles realizaram não apenas o seu primeiro longa-metragem, ao que deram o nome da região, mas todos os outros. Com o passar dos séculos, a região tinha chegado a uma situação crítica política e economicamente, mas seguia sendo um viveiro de mitos. Dela, tudo se havia extraído, e os adultos emigraram, deixando-a habitada principalmente por idosos e crianças.

Tal como a reivindicação crítica da imaginação tradicional do cinema de Dovzhenko, como o retrospecto revolucionário de Straub e Huillet, em Cordeiro e Reis há uma negação de separar o mundo nascente do que resiste a morrer. Os três longas-metragens nascidos da terra de Trás-os-Montes fazem isso, deixando para trás qualquer miragem etnográfica ou sentimental, internando-se de forma provocadora no terreno da montagem e da imaginação. Pela audácia das suas intervenções espaciais, temporais e narrativas, poderia se falar de antropologia-ficção, tentando pensar esses filmes – sobretudo para Trás-os-Montes e Ana, já que Rosa de areia perde definitivamente seu arraigo – “como se fosse o primeiro filme surgido na terra e falando sobre ela” (Cordeiro), um novo gênero que fazia justiça à sua complexa articulação formal e simbólica. Sem dúvida, a isso se referia Jean Rouch, um dos grandes admiradores do cinema de Cordeiro e Reis, quando assinalou que a superfície labiríntica dos seus filmes não obedece a fantasias sobre a realidade, mas sim à necessidade de reproduzi-la em uma ordem profunda, coerente: “Por caminhos novos aparecem fantasmas de mitos que imaginamos essenciais, porque reconhecemos eles antes de conhecê-los”, disse Rouch.

O próprio Reis antecipou essa forma de indeterminação quando o conjunto dos três filmes era só um projeto: “O que serão esses documentários ninguém o pode prefigurar. Implicarão uma luta corpo a corpo com formas ancestrais e modernaças, entre lobos e Peugeot 504, entre arados neolíticos e botijas de gás.” Os artifícios temporais parecem naturais no cinema de Cordeiro e Reis, e dão a impressão de não contrariar as regras do documentário. Seu trabalho se assemelha à costura de um tapete colorido e malhado, que reúne retalhos de diferentes épocas, e por isso as sequências costumam se articular em torno ao tato, algo pouco frequente na história do cinema, e daí vem o refinamento no recurso ao simbolismo da cor como elemento capaz de gerar rimas, relações à distância. As cenas solapadas criam uma espécie de estratigrafia, os planos são cortes que permitem ver as diferentes camadas do tempo histórico, que é também o tempo cotidiano. Segundo Reis, “o que se aprende nessas vilas é que é um vício separar a cultura milenar, as civilizações que vieram depois e a vida de hoje. É aí, nessa negativa de separar, onde encontro um elemento progressista e revolucionário.”

Após a morte de António Reis, em 1991, Margarida Cordeiro se esforçou para tentar rodar o filme que vinham preparando por dois anos, uma adaptação de Pedro Páramo, de Juan Rulfo. Pela primeira vez, os cineastas iam sair de Trás-os-Montes e rodar no México. Aqueles que conhecem a obra de Rulfo, não só as narrativas, mas também as fotografias, se lamentarão imaginando o que teria sido desse livro nas mãos de Cordeiro e Reis. Mas o destino desse último projeto era ficar inacabado, assim como Que viva México!, de Eisenstein. Cordeiro se afastou do cinema e voltou a Trás-os Montes, para a casa onde nasceu e onde ainda vive.

São 30 anos sem filmes de Cordeiro e Reis. Muitos daqueles que admiraram o seu cinema – Duras, Daney, Monteiro, Rouch, Ivens, Rivette – já não estão entre nós para continuar nos convidando a conhecer essas obras que tanto os nutriu (Joris Ivens contava que, uma vez, durante uma operação muito grave, antes de dormir pela anestesia, se confrontou com as últimas imagens que vinham à sua cabeça: planos soltos de Ana, a que tinha assistido anos antes). É urgente que esses filmes encontrem novos admiradores. Todos os que foram possíveis de completar poderão ser vistos, reunidos pela primeira vez no Brasil.