A alegria é a prova dos nove está em cartaz no cinemas do IMS Paulista em junho.
Assim como certo ex-presidente inelegível conseguiu catalisar tudo o que há de mais nefasto no mundo contemporâneo – o culto ao ódio e às armas, a apologia da tortura, a intolerância religiosa, a discriminação racial e de gênero, o desprezo pela ciência, pelas artes e pelo pensamento, a hostilidade ao meio ambiente, o desejo de exterminar o que é diverso –, a atriz e diretora Helena Ignez encarna em si o contrário de tudo isso: é uma força libertária, que posiciona seu corpo e seu espírito na linha de frente contra todas as formas de opressão.
O tom deliberadamente panfletário do parágrafo acima busca condizer com a veemência e a clareza quase didática do novo filme de Helena, A alegria é a prova dos nove, que entra em cartaz em São Paulo e no Rio nesta quinta-feira, espalhando-se depois por outras cidades.
Desta vez a própria Helena é Jarda Ícone (nome que remete a personagens memoráveis da atriz em filmes de Rogério Sganzerla, como Janete Jane, Sonia Silk, Ângela Carne e Osso), autodefinida como “artista, sexóloga e roqueira octogenária”. Como “xamã do prazer feminino”, ela ministra cursos, workshops e performances em que propugna o orgasmo da mulher como fonte de autoconhecimento e libertação.
Jarda move-se no centro de uma constelação de situações, com homens e sobretudo mulheres buscando as mais variadas formas de prazer e de interação com o outro, não num registro de hedonismo egoísta, mas de comunhão e fraternidade. É quase uma sociedade alternativa que se esboça nessa narrativa episódica, irregular, heterogênea, aparentemente caótica, mas que tem como eixo principal a ideia (já traçada no longa anterior de Helena, Fakir) de que a sexualidade feminina perturba e abala o poder patriarcal vigente.
Múltiplos fronts
A variedade vertiginosa de situações – de caminhadas numa praia deserta à encenação de um texto de Lautréamont, de workshops de sexo a uma reunião com um padre progressista que defende a população de rua e a maconha, de treinos numa academia de boxe a uma ocupação do MTST – expressa o posicionamento firme e claro da cineasta frente a uma miríade de situações, que vão da celebração da natureza à defesa das drogas que ampliam o poder da mente, passando pela luta em favor dos indígenas e a solidariedade ao povo palestino. Helena não tem papas na língua, nem tempo a perder.
Com exceção dos “milicos franquistas” que estupraram a jovem Jarda (Djin Sganzerla) num oásis no Saara, todos os personagens buscam exercer sua sexualidade das maneiras mais variadas, sem oprimir, limitar ou policiar o outro. Héteros, gays, lésbicas, trans, bissexuais, não-binários, assexuados – toda maneira de amor vale a pena.
O passado transcendido
Os flashbacks da viagem hippie de Jarda pelo Saara nos anos 1970, com seu jovem companheiro Lirio (Guilherme Gagliardi), são entrecortados por cenas fugazes do documentário em 16mm Fora do baralho (1971), de Rogério Sganzerla, que registrou a aventura do casal Helena-Rogério por aquela região. No filme atual, Lirio (encarnado na maturidade por Ney Matogrosso) é ex-namorado e melhor amigo de Jarda, e tem um relacionamento com o músico Beto (Dan Nakagawa).
Com esse procedimento de reelaboração e rearranjo da memória, a diretora se mostra ao mesmo tempo fiel aos projetos libertários da juventude e disposta a transcendê-los, ou a afiá-los para um novo contexto. Ela poderia dizer, como Paulinho da Viola: “Eu não vivo no passado; o passado vive em mim”.