No acervo transitório da plataforma de filmes Mubi encontra-se uma preciosidade pouco conhecida do público brasileiro: o longa-metragem argentino Invasão (1969), de Hugo Santiago, cujo roteiro foi escrito por ninguém menos que Jorge Luis Borges, com a colaboração inicial de seu velho amigo Adolfo Bioy Casares.
A melhor sinopse possível é a que o próprio Borges escreveu para apresentar o filme no catálogo do festival de Cannes: “Invasão é a lenda de uma cidade, imaginária ou real, sitiada por fortes inimigos e defendida por uns poucos homens que talvez não sejam heróis. Lutarão até o final, sem suspeitar que sua batalha é infinita”.
Essa cidade imaginária é Aquilea, ainda que tudo tenha sido filmado numa Buenos Aires facilmente reconhecível. Analogamente a essa fricção entre realidade e fábula, há uma combinação singular de códigos narrativos de filme de gângster com uma atmosfera melancólica marcadamente portenha.
O grupo que busca resistir à invasão iminente é formado por cidadãos comuns de classe média e meia-idade: um farmacêutico, um médico, um engenheiro, um conquistador galante. Entre eles se destaca Herrrera (Lautaro Murúa), um homem lacônico, cool e impassível como um detetive americano ou agente secreto. Há outro bando de resistentes, formado por gente mais jovem. Ambos os grupos são comandados por um velho solitário e taciturno, Don Porfirio (Juan Carlos Paz), figura inspirada no excêntrico escritor Macedonio Fernández, amigo de Borges.
Não convém contar muito da história, construída com muitas elipses que permitem ao espectador montar suas conexões. Ainda que exista uma narrativa coerente, que aponta para um desfecho dramático, cada sequência parece conter sua própria lógica e sua tensão interna, como se o filme fosse um conjunto de contos interligados.
Noir portenho
A impressão que fica é a de que o entrecho político (que ganharia dolorosa atualidade alguns anos depois, com a instauração da ditadura militar argentina) é pouco mais que um pretexto para Borges abordar seus temas mais caros: a valentia, a amizade, a covardia, a traição, o medo. A ideia de “batalha infinita” mencionada pelo escritor em sua sinopse sugere que a história humana é uma série cíclica de invasões e resistências, heroísmos e traições. (Veja-se, por exemplo, o seu “Tema do traidor e do herói”, conto levado às telas por Bertolucci como A estratégia da aranha.)
O fato que nos interessa é que esses tópicos, digamos, atemporais ganham aqui uma roupagem extremamente original de filme noir – pela excepcional fotografia em preto e branco de Ricardo Aronovich, pela sofisticação dos enquadramentos e pela ambientação em cemitérios de trens, docas desertas, galpões abandonados – impregnada por uma observação poética de tipos humanos e condutas morais.
Um papel especial é desempenhado pelas mulheres. Entre elas se destaca a impávida Irene (Olga Zubarry). Ela é amante de Herrera e, sem que este saiba, uma das líderes do grupo jovem da resistência. Mas há outras. O galanteador Lebendiger (Daniel Fernández), personagem inspirado no próprio Bioy Casares, é um homem casado que seduz moças bonitas até ser atraído por uma delas a uma emboscada fatal. E uma faxineira idosa ajuda Herrera a escapar de seus algozes por ver nele “um cavalheiro que respeita as mulheres”.
Estão presentes as noções de jogo, de mistério e labirinto que marcam toda a obra borgiana, universo abraçado com entusiasmo por Hugo Santiago, ex-aluno do escritor e então em seu primeiro longa-metragem, depois de ter dirigido dois curtas e trabalhado na França como assistente de Robert Bresson.
Poética da amizade
A comprovação de que uma poética da amizade e da honra prevalece no filme sobre as motivações históricas ou políticas concretas está numa cena admirável inserida pouco antes da metade do filme, sem que desempenhe papel algum no avanço da narrativa. É quase um clipe poético-musical, em que o médico borracho Silva (Roberto Villanueva) dedilha o violão e declama a “Milonga de Manuel Flores”, de Borges e Aníbal Troilo, num café esfumaçado. Sob os versos borgianos que refletem sobre a honra pessoal e a brevidade da vida (“morir es haber nacido”), vemos cenas breves de camaradagem da turma e da solidão de cada um.
Mas a história real, com sua brutalidade nada poética, acabaria por se impor, afetando diretamente o filme. Em 1978, em plena ditadura militar argentina, oito rolos de negativos de Invasão foram roubados do laboratório onde estavam, em Buenos Aires. Por causa disso, uma restauração da obra só foi possível duas décadas depois, a partir de quatro rolos originais sobreviventes e oito rolos de contratipos feitos a partir das primeiras cópias. Por isso a qualidade da versão disponível no Mubi tem trechos muito prejudicados, em especial nas cenas externas noturnas.
Há no Youtube duas cópias sem legendas e uma com legendas em inglês, esta última com qualidade de imagem ligeiramente superior:
A triste ironia é que o próprio Borges, motivado por seu aristocrático antiperonismo e anticomunismo, acabaria apoiando o golpe militar em seu país. E um dos grandes achados do filme, que foi o de situar o clímax dramático num estádio deserto (a célebre Bombonera, do Boca Juniors), também se revelaria profético quando estádios de futebol passaram a ser usados como campos de prisioneiros no Chile e na Argentina.
Mas o diretor Hugo Santiago (1939-2018) explicou numa entrevista que a escolha do estádio vazio tinha um propósito eminentemente poético, de aludir aos antigos teatros gregos e arenas romanas. A entrevista de Santiago, também disponível no Youtube, expõe a gênese e o desenvolvimento do roteiro na parceria entre Borges, Bioy e ele próprio. Um banquete para quem se interessa pelas relações entre literatura e cinema.
Em tempo: Borges e Bioy ficaram tão satisfeitos com a experiência que escreveram também o roteiro do filme seguinte de Santiago, Les autres (1974), realizado na França.