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Fuga para as montanhas

24 de março de 2022

A felicidade das pequenas coisas, filme do Butão que ganhou visibilidade com sua indicação ao Oscar de melhor produção estrangeira, está chegando finalmente ao streaming (no Belas Artes à la carte e, a partir de 30 de março, também no Now).

A história contada ali se deixa resumir facilmente: Ugyen Dorji (Sherabi Dorji), jovem professor do ensino fundamental, sonha em emigrar para a Austrália e ganhar a vida como cantor de música pop. Em vez disso, ele é transferido para Lunana, uma das aldeias mais remotas do reino do Butão, com uma população de 56 almas, encravada no Himalaia a quase cinco mil metros de altitude. Ali não há energia elétrica nem sinal de celular. A escola carece de tudo: quadro negro, giz, lápis, papel...

Com esse argumento nas mãos e esse cenário diante dos olhos, o diretor e roteirista Pawo Choyning Dorji, estreante em longa-metragem, corria um duplo risco: de cair num exotismo turístico-pitoresco e de resvalar para o sentimentalismo edificante, para o qual, aliás, o título brasileiro parece puxar o filme. (O título original é algo como Lunana: um iaque na sala de aula.) Seria uma espécie de Sangri-La redivivo.

Mudança de perspectiva

Seu primeiro mérito, portanto, foi o de evitar esses perigos sem perder a ternura pelos personagens e sem fechar os olhos para a beleza majestosa do Himalaia, com seus vales, desfiladeiros e picos nevados.

Há um artifício simples que facilita, de certa forma, o envolvimento do público ocidental com a história narrada: assim como o espectador urbano médio, o protagonista Ugyen, depois do primeiro choque, aprende aos poucos a mudar de perspectiva e apreciar o modo de vida rústico e o ritmo contemplativo dos aldeões de Lunana. Assim como ele, somos conquistados pela simplicidade dos gestos, pelo ambiente fraterno e, principalmente, pela graça espontânea das crianças da aldeia.

É, de certo modo, uma versão mais modesta de Dersu Uzala, o esplendoroso filme de Kurosawa que também contrasta o modo de vida urbano com outra forma de relação com a natureza e os semelhantes. O estilo com que Pawo Choyning Dorji conta essa história é ao mesmo tempo enxuto (isto é, sem firulas) e poroso à beleza do lugar e dos seres, transitando com segurança dos grandes planos gerais, em que os personagens quase somem na paisagem, para os closes e pormenores reveladores de condições materiais e estados de alma.

 

Ensinar e aprender

A Lunana do filme é uma comunidade pré-capitalista (ou à margem do capitalismo), isolada e, ao que parece, autossuficiente. As relações interpessoais são fraternas e igualitárias. O professor Ugyen aos poucos se dá conta de que tem tanto a aprender quanto a ensinar ali.

Uma cena eloquente é a aula em que Ugyen tenta alfabetizar as crianças em inglês, usando palavras simples que se referem a coisas que elas conhecem: A de apple, B de ball. Quando ele passa para o C de car os alunos fazem cara de incompreensão. Nunca viram um carro na vida, e ele tem que buscar outra palavra. Impossível não pensar em Paulo Freire e seu método de alfabetização que parte da realidade do alfabetizando.

Mas nem tudo é assim tão idílico em Lunana. O banheiro é um barraco externo com um buraco no chão de madeira. Para acender o fogo é preciso recolher bosta seca de iaque. À noite o frio penetra pelo papel usado como cortina nas janelas. Numa aula ao ar livre, Ugyen usa escovas e creme dental que encomendou na cidade para ensinar as crianças a escovar os dentes, algo que para nós, urbanos, parece uma questão básica, automática, de higiene e saúde.

Não há, portanto, uma mera contraposição maniqueísta entre a “pureza da vida aldeã” e a “degradação da vida moderna”. Tanto que o professor é valorizado ao extremo como representante das luzes da civilização, o homem que traz o mundo para aquele lugarejo.

E não terá sido casual, também, que a primeira imagem de fora do Butão a surgir na tela seja a da Ópera de Sydney, prodígio do engenho humano, arte e ciência unidas a mostrar que a força da grana também pode erguer coisas belas. O problema, sabemos, é tudo o que ela destrói.

 

Billy Wilder

Dia 27 de março completam-se vinte anos da morte de um dos maiores cineastas do mundo, Billy Wilder (1906-2002). Não há muito a acrescentar ao que já se disse sobre esse fabuloso diretor e roteirista que criou obras-primas em diversos gêneros. O que sempre vale a pena é ver ou rever seus filmes originais, marotos, pungentes, divertidos, inteligentes, corrosivos.

Segue-se uma filmografia essencial de Wilder disponível em streaming.

  •          Crepúsculo dos deuses (1950). Esse réquiem pela velha Hollywood, centralizado na figura de uma diva quase esquecida do cinema mudo (Gloria Swanson), é um dos maiores filmes já realizados sobre o mundo do cinema, a transitoriedade da glória, a fragilidade dos sonhos e mais uma porção de coisas. Está disponível na plataforma Belas Artes à la carte.
  •          Quanto mais quente melhor (1959). Talvez a comédia mais perfeita e espetacular de todos os tempos. Dois músicos (Jack Lemmon e Tony Curtis) se travestem de mulheres para fugir de gângsteres e acabam topando com a igualmente letal (por outros motivos) Marilyn Monroe. Disponível para aluguel na Amazon Prime.
  •          Pacto de sangue (1944). Filme noir clássico, com roteiro de Wilder e Raymond Chandler, baseado em romance de James M. Cain sobre vendedor de seguros (Fred MacMurray) seduzido por uma femme fatale (Barbara Stanwyck) para matar o marido dela e dividir a herança. Prato cheio para Wilder explorar os efeitos do desejo e da cobiça sobre o caráter dos indivíduos. Disponível no Belas Artes à la carte.
  •          Se meu apartamento falasse (1960). Comédia amarga sobre funcionário modesto (Jack Lemmon) que empresta o apartamento para as puladas de cerca do chefe, mas acaba se apaixonando pela amante deste (Shirley MacLaine). Poucas vezes o cinema atingiu esse ponto exato e sublime entre o drama e o humor. Disponível para aluguel na Amazon Prime.
  •          Farrapo humano (1945). Mais do que um drama protagonizado por um alcoólatra (o escritor frustrado vivido por Ray Milland), é um filme sobre o próprio alcoolismo, retratando de modo implacável o mecanismo que realimenta o vício. Nem o final um pouco acochambrado para agradar a mentalidade moralista da época tira a contundência dessa obra-prima frequentemente subvalorizada. Disponível no Belas Artes à la carte.
  •          Beije-me, idiota (1964). A mais corrosiva comédia sobre casamento e (in)fidelidade conjugal. Compositor medíocre do interior (Ray Walston) contrata garçonete/garota de programa (Kim Novak) para fazer as vezes da esposa e seduzir um cantor galã (Dean Martin) de passagem pela cidade. Condenado como “imoral” pela Legião Católica da Decência, foi exibido na época apenas nos “cinemas de arte”. Disponível com legendas no Youtube.
  •          A montanha dos sete abutres (1951). A história do jornalista inescrupuloso (Kirk Douglas) que explora de modo sensacionalista o drama de um trabalhador soterrado numa mina revela as entranhas da imprensa convertida em espetáculo. Embora desde então a mídia tenha se transformado muito em termos tecnológicos, a crítica essencial permanece mais válida do que nunca. Disponível no Belas Artes à la carte a partir de 31 de março.